Profissionalismo da/na polícia

Alan Marques/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Por Paula Poncioni*

O que significa profissionalismo da/na polícia? A quem cabe formar nossos policiais?

No curso da história da polícia no mundo ocidental contemporâneo tem havido, em diferentes contextos nacionais, um movimento para o desenvolvimento do profissionalismo da/na polícia, com vistas a assegurar a qualidade dos membros ocupacionais e a qualidade do próprio trabalho policial na provisão de segurança na sociedade.

Nos países de democracia consolidada, assistiu-se nas últimas décadas decisivos processos de reforma das polícias com vistas ao incremento do profissionalismo da polícia incidindo diretamente nas formas de recrutamento, de seleção, de ensino e treinamento e de organização da carreira. Em quase todas estas nações, ocorrências graves de violência policial e comprometimento das instituições com a corrupção e o racismo, somadas a esgotamento de um modelo profissional policial, que privilegia um tipo de policiamento estruturado no patrulhamento aleatório e na reatividade, produziram crises consideráveis e inauguraram uma agenda de reformas; inaugura-se um profissionalismo de “tipo novo” baseado em um modelo profissional policial que enfatiza o serviço público, a discrição do policial informada por alto nível de educação e treinamento, e a busca de uma relação mais estreita entre a polícia e a comunidade. São exemplos deste tipo de profissionalismo, o modelo de “serviço” e o modelo de “polícia comunitária”, entre outros.

Desde então, observa-se um novo sentido atribuído ao profissionalismo da/na polícia, que se traduz em um esforço para incorporar questões consideradas como temas importantes ao escopo do conhecimento necessário para o preparo e a consolidação de um profissional de polícia com um padrão de excelência e comportamento ético para desempenhar as funções inerentes ao seu mandato em uma sociedade democrática.

No entanto, estudos realizados nos EUA, no Canadá e em outros países de língua anglo-saxã e alguns poucos no Brasil revelam, por intermédio das pesquisas empíricas, que tem sido muito difícil avaliar os impactos sobre alguns aspectos relacionados ao nível de educação policial sobre o [bom] desempenho do trabalho policial. Um deles diz respeito aos efeitos da educação superior sobre o desempenho do trabalho policial cotidiano.

Esses estudos revelam que apesar de desejável que o candidato à carreira policial tenha um nível elevado de educação, não há uma correlação [positiva] entre o nível educacional, e a melhora da performance policial não é consensual.

À despeito das controvérsias sobre o assunto a educação policial tem se tornado mais comum nos diferentes níveis hierárquicos das organizações policiais.

Principalmente nos países de língua saxã esta tarefa tem sido uma responsabilidade do Estado partilhada com a sociedade política e civil organizada (parcerias com universidades e institutos de pesquisa) que produzem políticas, a partir de estudos.

No Brasil, ao longo das últimas décadas, acompanhando a tendência à adoção de um novo profissionalismo nas/das polícias, somam-se algumas iniciativas do governo federal e de alguns governos estaduais para o incremento da educação policial como: a concessão de bolsas-formação para policiais civis e militares, a realização dos cursos de especialização promovidos pela Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP) em parceria com universidades públicas e privadas para profissionais da área e da sociedade civil organizada e os cursos de educação à distância por meio dos telecentros. Ressalta-se, ainda, a criação de cursos de mestrado e doutorado pelas próprias polícias estaduais.

Contudo, ao contrário dos contextos nacionais acima mencionados, carecemos ainda de estudos sistemáticos e independentes sobre esses cursos – conteúdo programático, procedimentos metodológicos, docentes, etc – e seus efeitos sobre o trabalho policial com vistas a formulação de políticas públicas para o setor.

Uma avaliação, ainda que superficial, evidencia que se comparando com um passado recente, houve significativos avanços no processo de socialização profissional de policiais quanto ao recrutamento, ao ingresso e a formação e treinamento profissional.

Com relação particularmente aos cursos de formação profissional, novos conteúdos e metodologias, bem como novos atores foram agregados – pesquisadores sobre o tema da segurança pública e representantes da sociedade civil e política participam de alguns módulos desses cursos-, somando novos saberes ao conhecimento do profissional de polícia.

Entretanto, vale a pena salientar que a educação do policial no Brasil permanece um monopólio das polícias, obstando o monitoramento e a avaliação com relação a mudança e mobilidade deste grupo ocupacional como um todo, em direção a um profissionalismo que contemple valores democráticos desejáveis – para dentro e para fora das organizações policiais – com vistas ao desempenho de suas múltiplas funções, que se situam entre as mais complexas e difíceis do mundo moderno.

Nesta direção, pode-se afirmar que o trabalho policial exige um grau de especialização e conhecimento que requer o comprometimento do Estado, da sociedade civil e das organizações policiais para que o incremento do profissionalismo das/nas polícias ultrapasse a retórica frequentemente utilizada como estratégia empregada por diversas ocupações, inclusive pela própria polícia, para a criação e proteção do seu lugar na sociedade.

Deste modo, algumas questões são levantadas para reflexão: quais são os significados do profissionalismo das/nas polícias brasileiras? Quais sentidos são atribuídos por este grupo ocupacional específico ao tema do profissionalismo? Pode-se perguntar, ainda, se os discursos desse grupo ocupacional específico permitem inferir que a retórica do profissionalismo, no caso de “tipo novo”, tem gerado, para além da “bagagem honorífica” do termo, alguma mudança e mobilidade para o grupo ocupacional como um todo, em direção à profissionalização, com a consolidação de alguns critérios objetivos relacionados ao profissionalismo.

Não há condições de analisar aqui todas as indagações acima formuladas, mas é desejável considerar  essas e outras questões relacionadas a educação policial como pontos para problematizar o assunto entre os diferentes atores interessados a “dar vida” – nas teorias e nas práticas educacionais – aos valores que conformam um bom policial – dentro e fora das organizações policiais – em uma sociedade democrática.

 

 

 

 

 

 

Professora da UFRJ e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.