As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis

Renato Sérgio de Lima

O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência que disciplina a segurança pública brasileira e baliza doutrinas de atuação policial. As polícias não podem decidir sobre quando e como devem respeitar decisões judiciais e as leis

 

Esta semana o STF retoma o julgamento da ADPF 635/2020, que vetou operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia, exceto em casos emergenciais e condicionados à prévia notificação ao Ministério Público. São vários os aspectos a serem considerados e discutidos, ainda mais diante de operações como a no Jacarezinho, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em maio deste ano, e agora a no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, pela PMERJ.

Nessas horas, o debate parece ideológico e revela embates de diferentes valores e moralidades. Todavia, precisamos pensar alguns aspectos jurídico constitucionais prévios, na ideia de sugerir ao pleno do STF uma reflexão mais ampla sobre o direito à segurança. Em minhas aulas na FGV, desde 2014, tenho insistido no fato de segurança ser um direito fundamental e, portanto, que  justiça social só se faz garantindo-o em sua plenitude. Vivemos em um Estado de Direito e, nele, instituições públicas são sujeitas a freios e contrapesos, não há poder absoluto.

Há muitas confusões conceituais no cotidiano da segurança pública brasileira, até por ela ser mais um campo organizacional e não um conceito fechado, delimitado. Porém, vale reler o que diz nossa CF:

Segundo o Caput do Artigo 144 da CF, que regula como ela será assegurada para a população, “segurança pública, dever do Estado, DIREITO e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Esse é o artigo mais comumente lembrado quando falamos do tema, mas quase sempre para dizer qual corporação/instituição pode ou não atuar no campo.

Porém, neste mesmo caput, o Artigo 144 faz relação a um fato central, ou seja, explicita que segurança é um direito e, enquanto tal, está inscrito no preâmbulo da Constituição Federal e nos Artigos 5o e 6o, que tratam dos direitos fundamentais. Diz o Preâmbulo:

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”

Já o artigo 5º, por sua, vez, diz, em seu caput, que: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Termos esses que se traduzem em 78 itens ou premissas fundamentais que precisam ser observadas na organização do Estado e na sua forma de agir.

Entre eles, vários associados à ação em comunidades, como o III, que diz que ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;  o XLIX, que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral; ou o XLVII, que reforça que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada.

Na Constituição e/ou na legislação infraconstitucional, contudo, não há uma definição clara sobre o que significa “ordem pública”, deixando para as polícias a interpretação operacional do que significa mantê-la. Isso aumenta a discricionariedade e reduz controles. Aqui uma evidência da importância do julgamento da ADPF 635, pois ela pode ter um impacto prático muito maior do que o inicialmente previsto. Ela pode dar balizas para a modernização jurisprudencial da legislação, ainda sustentada por normas anteriores a 1988.

Por exemplo, o “poder de polícia” é regulado apenas no Código Tributário Nacional, de 1966, em seu artigo 78, onde está definido que:

“Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com OBSERVÂNCIA DO PROCESSO LEGAL e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem ABUSO OU DESVIO DE PODER”

A ADPF é importante, ainda, pois a própria Constituição, em seu Artigo 144, parágrafo 7º, prevê que “a lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a EFICIÊNCIA de suas atividades“. Oras, não preciso ser jurista para interpretar que “EFICIÊNCIA”, aqui, é garantir o que está previsto no preâmbulo e no capítulo dos direitos fundamentais e que, portanto, as polícias não podem tudo, até porque não faltam leis que disciplinam a ação do Estado, a exemplo do Código de Processo Penal, a Lei que cria o Sistema Único de Segurança, a  Improbidade Administrativa, entre outras.

O STF tem a oportunidade de, na ADPF 635, atualizar a jurisprudência de modo a disciplinar tais tópicos e modernizar doutrinas de atuação policial frente ao que a CF prevê. O CNMP, por sua vez, dado que o Ministério Público detém a prerrogativa de controle externo da atividade policial não precisaria aguardar o STF e poderia, ele próprio, ampliar a ação dos Ministérios Públicos para além do controle de cada caso; do controle de eventuais desvios individuais de conduta. É preciso tratar segurança como um direito coletivo e difuso e cobrar os responsáveis por sua garantia para que ele seja implementado de acordo com a premissa de ser um direito fundamental inalienável e condição para o exercício da cidadania.

O Brasil precisa atualizar sua legislação e cobrar os órgãos para se ajustarem ao ordenamento constitucional. Isso significa repensar leis gerais ou orgânicas, normas operacionais e mecanismos de governança e controle. As polícias não podem ter liberdade para decidirem sobre quando vão respeitar decisões da Justiça. Uma segurança pública de fato eficiente pressupõe respeito incondicional às regras do jogo e, no Estado de Direito, quem dá a última palavra é o Judiciário. Não podemos aceitar nada além disso.

 

 

Para saber mais:

Segurança Pública no Brasil: história de uma construção inacabada. Marco Aurélio Ruediger e Renato Sérgio de Lima (orgs). Editora da FGV.