Os ovos da serpente

GABRIEL BASTOS/FUTURA PRESS/FOLHAPRESS
Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A condescendência com o arbítrio policial ameaça a todos. Diante da polícia que mata, vida, liberdade, civilidade, instituições e a democracia estão sob risco, real e imediato

Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto*

Este mês faz 10 anos do brutal assassinato da juíza Patrícia Lourival Acioli. Covardemente emboscada quando chegava a sua casa, foi morta com 21 tiros disparados por milicianos julgados por ela. O crime chocou o Brasil. O presidente do Supremo Tribunal Federal à época, Cezar Peluso, descreveu o ato como “um ataque ao governo brasileiro e à democracia”. Todos os 11 policiais militares julgados foram condenados, inclusive o coronel comandante do 7º BPM, da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

Patrícia Acioli se tornou inimiga da quadrilha que assolava o município de São Gonçalo, o segundo mais populoso do Rio de Janeiro, e selou sua morte ao decretar as prisões de policiais do 7º BPM, envolvidos em autos de resistência forjados. Crimes de execução até então dissimulados por dados oficiais da criminalidade.

A letalidade policial, em regra, é notada nos autos de resistência, porém, a participação expressiva dos policiais em execuções extrajudiciais, estando oculta, é desconsiderada. De modo ímpar, o assassinato de Acioli explicita a forte ligação entre as mortes decorrentes de intervenção policial e os homicídios, as duas maiores causas de mortes violentas intencionais no Brasil.

Estudos sugerem que as motivações pessoais do policial para a prática da ação letal abusiva estão organizadas em três categorias. São elas: (1) ação letal fundada no ressentimento e no desejo de vingança do assassínio do irmão de farda; (2) ação letal calculada para obtenção de vantagem econômica, na morte como negócio; (3) ação letal performática para exibição do atributo social “valentia” na busca de reconhecimento social.

Indiferente a motivação, a conduta letal tem efeitos indeléveis sobre o indivíduo que a pratica. O abismo da violência extremada que amedronta alguns policiais, excita outros mais aventureiros a se lançarem de encontro ao incerto sob a sensação de sobrenatural coragem, animada por forte emoção e descargas hormonais. Mais fundo o precipício, maior a emoção. Há, porém, casos em que o mergulho alucinado no abismo do necropoder leva à depressão e a impulsos suicidas, transformando os algozes em vítimas da própria violência.

Em geral, os policiais mal sabem que o preço da violência é alto. Não lhes é mostrado que, ao afundarem em enfermidades psíquicas e físicas, arrastam consigo suas relações familiares e amizades antigas. Muito se perde. Em casos mais drásticos, perde-se tudo.

As histórias de vida de policiais matadores, comumente, expõem indivíduos que acreditam (ou acreditaram) na eterna luta do bem contra o mal. Policiais que se mostraram dispostos a arriscar suas vidas em defesa de valores considerados nobres nas suas organizações e por boa parte da sociedade.

Entretanto, sabe-se que a linha que separa os dois lados dessa oposição maniqueísta é muito tênue. Quanto mais o indivíduo se proclama do bem, mais próximo está da maldade. Em outras palavras, quanto mais o policial se considera defensor da virtude, maior sua vaidade e, possivelmente, maior a prática de improbidades para alimentá-la.

Os traços de narcisismo exacerbado e de outros aspectos da personalidade humana registrados nas histórias de vida de policiais matadores permitem que se cogite sobre o que os psicólogos chamam na literatura clínica de “dark triad”. Por sua vez, o olhar sociológico sobre os elementos do subjetivismo contemporâneo observados esclarece que há nos aspectos verificados uma lógica de defesa narcísica, de autopreservação e de sobrevivência psíquica, que está radicada não meramente nas condições objetivas da “guerra das ruas” (representação social comum do contexto criminal urbano enfrentado por policiais), mas na experiência subjetiva de vazio, isolamento e medo que a condição policial lhes impõe.

O irrefutável é que há nas fileiras das organizações policiais indivíduos com inclinação homicida, tidos como “valentes”, que se engajam vigorosamente na luta do bem contra o mal e que encontram na parcela da população amedrontada pela criminalidade urbana o apoio e a condescendência que necessitam, para sepultar de vez o dilema moral de ter que seguir a lei perante um sistema de administração da justiça criminal que “solta os bandidos que a polícia prende”. De justiceiros a milicianos, é um pulo.

Conquanto o freio moral de certos policiais justiceiros faz com que não se encaixem na racionalidade econômica mortífera da milícia, fundada no desejo de rápido enriquecimento pessoal, de igual modo, a união do útil ao agradável entusiasma outros tantos com pendor sicário e, ao que parece, a socialização na milícia e nos grupos de extermínio faz com que os papéis sociais de policial e de criminoso se misturem, gemando o policial-bandido ou o bandido-policial, conforme a porção que prevalece em cada indivíduo.

Uma charge da grande cartunista Laerte, carregada de ironia, bem retrata em arte a realidade crua da violência policial e nos ajuda a enxergar a rede de microdespotismos que assinalam as interações cotidianas, entre a polícia e a população civil.

Os quadrinhos apresentam o ataque do obediente cão bravo, lançado contra oponentes políticos, enquanto seus algozes se divertem satisfeitos. O animal continua sua sanha dilacerando desafetos, mas também outros insignificantes. Tudo bem. E segue colérico, atacando, até que preocupa. É então chamado de volta. Mas ao tornar, seus donos constatam que a fera se transmutou na fúria. Conhece agora o seu amedrontador poder destrutivo. Bestial, deleitou-se com o gosto do sangue. Ameaçadoramente, não mais obedecerá.

Assim como a ferocidade do cão bravo, a letalidade policial encontra sustentação na moralidade condescendente com a violência, na ideologia que brada “bandido bom é bandido morto!” e “policial que não mata não é policial!”. Não será possível ao conivente lavar as mãos. De igual maneira aos quadrinhos, ninguém estará seguro, seja ele policial ou cidadão de bem.

O cometimento da ação letal abusiva atenta contra o policial militar que veste sua farda e sai para trabalhar imbuído de melhor servir à sociedade, sem recorrer ao uso da força letal de modo desnecessário e injustificado. Esse policial íntegro e comprometido com seu semelhante, mas nem por isso menos exposto aos riscos e percalços inerentes ao exercício da atividade, é diferenciado do indivíduo sicário e pernicioso que deprecia a instituição e não merece ser confundido e tratado como venal.

A tolerância social à violência policial abusiva alimenta monstros. Engorda justiceiros, grupos de extermínio e milícias; essas últimas, as milícias, infiltram-se no Estado com a audácia e a capacidade real de corromper e peitar a organização policial e os poderes constituídos, coisa que os demais grupos criminosos não o fazem com tamanha facilidade.

Que o martírio de Patrícia Acioli seja lembrado e nos sirva de permanente alerta, de que as condescendências com o arbítrio policial são como ovos da serpente que nos ameaçam a todos. Diante da polícia que mata, vida, liberdade, civilidade, instituições e a própria democracia estão sob risco, real e imediato.

 

*Sandoval Bittencourt de Oliveira Neto é coronel da reserva (PMPA) e doutor em Sociologia (UnB).

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