Morte de Ecko fortalece a expansão política miliciana
Por trás da morte midiática do homem mais procurado pela polícia do Brasil está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento
José Cláudio Souza Alves*
O assassinato de Wellington da Silva Braga, o Ecko, em uma operação da Polícia Civil, no dia 12 de junho de 2021, representa mais um capítulo de uma guinada política da atuação policial pelo governo do estado do Rio de Janeiro em direção ao fortalecimento da estrutura miliciana que vem se expandindo de forma acelerada nos últimos anos. Por trás da morte midiática daquele que seria o homem mais procurado pela polícia do Brasil, e o líder da maior milícia do estado, está uma construção política de consolidação da milícia, ao invés do seu enfraquecimento, como afirmado pelas autoridades policiais e pela mídia. Para entender isso, é preciso relacionar essa morte a uma sequência de eventos que se iniciaram em outubro de 2020.
Naquele momento, a um mês das eleições municipais, uma operação conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal assassinou 17 pessoas, sob a justificativa de serem “narcomilicianos”. Esse termo passava a dar a tônica da atuação policial. Com ele, desvincula-se a atuação miliciana da ligação com os agentes de segurança pública, dentro do Estado, atribuindo-a às práticas de traficantes. A consequência seria a liberação para matar tais indivíduos, já que não passavam de bandidos. O marketing da ação policial “antimilícia”, ocultando o engajamento crescente dos policiais ao empreendimento miliciano, soma-se à lógica do “bandido bom é bandido morto”, tão cara à extrema direita, naquele momento, em plena campanha eleitoral.
O segundo evento foi a implantação de um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar no Complexo do Roseiral, na cidade de Belford Roxo, em janeiro de 2021, a partir das articulações entre o prefeito reeleito, Wagner dos Santos Carneiro, e o governador Cláudio Castro. As mais de 20 mortes produzidas por operações policiais nessa área vitimando membros do Comando Vermelho (CV) se incluem na geopolítica de expansão das milícias, que há décadas dominam os bairros do São Bento e Pilar, na cidade vizinha de Duque de Caxias, seguindo o eixo da Avenida Leonel Brizola.
O terceiro momento surge na operação da Polícia Civil que assassinou 28 pessoas em uma operação na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Tal desproporcionalidade de mortes, quando comparadas ao histórico mais recente das operações na capital, relaciona-se tanto ao confronto com o STF e a ADPF que restringe operações policiais nas favelas, em decorrência dos efeitos da pandemia de Covid-19, como à disputa geopolítica miliciana que vem isolando o Jacarezinho a partir dos conflitos com o CV em três favelas próximas: Arará, Mandela 2 e Bandeira 2, as duas últimas, do Complexo de Manguinhos.
A morte de Ecko, a aproximadamente um mês da chacina do Jacarezinho, dá prosseguimento ao projeto em curso. A aliança entre milícia e Terceiro Comando Puro (TCP), tendo o aparato policial como fiador, perpetua-se, a despeito dos assassinatos de “narcomilicianos”, ligados ao TCP, presentes na Liga da Justiça ou ex-bonde do Ecko, numa espécie de “preço a ser pago” pela manutenção dos negócios e marketing “antimilícia” que tenta ocultar a expansão miliciana.
Há, igualmente, uma intensificação do controle territorial, econômico e político eleitoral feito pela milícia em cima das áreas do CV. Projeta-se um alinhamento midiático com o discurso do extermínio, praticado pela política de segurança pública, com destaque para as redes de televisão, notadamente o SBT, com sua penetração popular. Essa correlação de acontecimentos deixa nítida a estratégia política voltada para as eleições de 2022, nas quais os candidatos ao governo do estado, Câmara estadual e federal, Senado e Presidência da República, com projetos de extrema direita, visam aprofundar seus ganhos a partir das disputas entre si, engalfinhados para ocupar o palanque bolsonarista.
O cenário de aprofundamento do fosso social e crescimento do mundo do crime, como alternativa real frente à crise multidimensional que se estabelece, projeta a área de segurança pública como grande palco de operações psicológicas, sociais, midiáticas e assassinas cujo objetivo é consolidar uma hegemonia inconteste da extrema direita sob a batuta bolsonarista. A morte de Ecko, apenas mais um soldado transformado em chefão para justificar a lógica do extermínio como solução, tem, igualmente, uma outra dimensão, que não se pode desprezar. Ela abre um cenário de disputas, internas e externas à milícia, quanto à liderança e condução do legado miliciano na Zona Oeste e Baixada Fluminense que juntas congregam quase 50% do eleitorado do estado.
Danilo Dias Lima, o Tandera, emerge como novo “Lampião” a ser degolado, mas provoca instabilidade na disputa interna à milícia ao ser alçado, pela morte de Ecko, à categoria de novo “chefão” que enfrenta a resistência dos herdeiros familiares de Ecko, como é o caso de Luís Antônio da Silva Braga, seu irmão. Essa instabilidade da disputa interna miliciana se junta, por sua vez, ao risco da retomada, pelo CV, de áreas perdidas para a milícia, produzindo uma intensificação do terror nas comunidades em disputa, que são muitas. Esse agigantamento da onda de instabilidade e medo reforça o pano de fundo para a manutenção do extermínio como prática da segurança pública, retroalimentando mais operações e chacinas enquanto cortina de fumaça que oculta a expansão miliciana como projeto de controle de amplo espectro e, principalmente, político eleitoral.
Todos esses eventos projetam a milícia como grande palanque para 2022. Quem tiver mais milicianos ao seu lado, com controle territorial, econômico e político de áreas, sai na vantagem. Quem mais matar os “narcomilicianos”, troféus criados para as prateleiras da extrema direita, também ganha pontos. Quem soma as duas estratégias tem mais pontos ainda. Desse modo, o a região metropolitana do Rio de Janeiro mantém o seu papel de grande laboratório, repercutindo para o resto do país, dentro do projeto bolsonarista hegemônico, as novas etapas da “milicialização” da segurança pública.
*Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”.
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