O soldado e o Estado no Brasil
Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado.
Catarina Corrêa*
Pagamos por nossas escolhas. Não há maior verdade, quando falamos de política. E o Brasil tem um histórico de adiar o futuro, de deixar os conflitos para depois, porque estamos em crise. Mas sempre estamos em crise. Então, a reforma das instituições sempre fica para depois.
No final do século XIX, passamos de uma monarquia institucionalmente falida para uma república disfuncional. E não é nenhuma novidade que sistemas presidencialistas, sobretudo quando dependem de amplas coalizões, oferecem poucas ferramentas para manejar crises políticas. Não temos “recall”, nem dissolução de governos politicamente ineptos. Temos o “impeachment”, que depende da existência de crimes de responsabilidade. Nome infeliz, já que, tecnicamente, não parece muito com o que vemos no Direito Penal. Mas, no final, para quem perde, “impeachment” sempre será golpe.
Pois o Brasil, quando iniciou sua história republicana – e lembre-se, por meio de um golpe militar –, adotou uma estrutura institucional que oferece, como dito, poucas ferramentas para debelar crises. E, para nosso infortúnio, temos, desde o fim do século XIX, uma superposição de crises constitucionais.
Temos a crise da federação – que já existia quando ainda éramos um país unitário –, em que todos os seus membros estão sempre descontentes, culpando-se mutuamente por seus infortúnios.
Temos a crise do sistema representativo, gerada por partidos sem permeabilidade, que não permitem que a sociedade participe de suas estruturas, que se estabelecem como feudos, e cujo único interesse é, em regra, a manipulação da política mais rasteira ou simplesmente a divisão do butim chamado fundo eleitoral.
Temos mais crises do que o espaço desse artigo permite relatar. Importante mesmo é lembrarmos como essas crises (não) foram administradas.
No momento em que a debilidade institucional – que inviabiliza a construção do futuro, ao sonegar a implementação de políticas públicas de longo prazo coerentes – toma conta do Estado, não há nada que ele possa fazer além de permanentemente tentar apagar incêndios.
O resultado desse quadro é impaciência e frustração com a falta de resultados. O que os cidadãos percebem é tão-somente injustiça. Injustiça na cobrança dos impostos, na repartição das receitas tributárias, na distribuição dos serviços públicos, na criação da desejada igualdade de oportunidades.
Em nossa experiência histórica, essas situações de profunda frustração política acabam sendo mediadas, em seus momentos mais agudos, pelos militares. Quando as instituições não dão conta, os militares se sentem legitimados a oferecer uma solução.
Não houve força institucional ou social que fosse suficientemente poderosa para estabelecer um limite claro para essas intervenções. Refiro-me a todos os tipos de intervenções, até mesmo tweets em véspera de julgamento no STF.
Voltando à nossa história política, a própria república surgiu também de uma crise militar, a do Império. A República Velha, por sua vez, revelou a presença quase permanente dos militares no protagonismo político. A Revolução de 1930, primeiro ímpeto de modernização (para o bem e para o mal) na história do Brasil, teve o dedo do tenentismo. O fim do Estado Novo se deu pela mão dos militares, que, depois de lutar pela democracia (dos europeus), desistiram de Getúlio Vargas. Depois disso, a precária democracia brasileira continuou precisando da tutela de militares (antigolpistas): Marechal Lott, por mais de uma vez, e Leonidas Pires Gonçalves, só para citar os mais destacados.
Certamente, o clima de intransigência e de intolerância política, que, de tempos em tempos, nos assola, alimenta a disfuncionalidade mais grave de todas: a perda da fé de que o sistema político, com todas as suas imperfeições, seja capaz de ajudar-nos a enfrentar a tempestade.
Certamente, o General no palanque nos serve de alerta. Precisamos de limites institucionais mais claros. Precisamos que o pensamento democrático balize, de fato, as instituições públicas, mormente as que detém o exercício do poder coercitivo do Estado.
Samuel Huntington, em “O Soldado e o Estado” (1957), sustenta que os militares operam em uma esfera separada, mas subordinada. Sua teoria – criticada como excessivamente idealizada – ensina que os líderes políticos fazem a política e fornecem a orientação abrangente do que deve ser feito, enquanto os militares se atêm à sua área de competência – a aplicação do poder militar. Essa estrutura oferece uma orientação clara e precisa, mas exige musculatura institucional, que, aparentemente, ainda não temos.
* Juíza do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
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Na edição desta semana, leia também “A política entrou nos quartéis” e “Autonomia financeira e o impacto da violência contra as mulheres brasileiras“.