Os problemas dos protocolos de abordagem policial

O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco.

Gilvan Gomes da Silva*

No dia 28 de maio uma abordagem policial ganhou destaque nas redes sociais e nas manchetes das grandes mídias televisivas e digitais. Em um parque na Cidade Ocidental, em Goiás, um ciclista jovem Youtuber praticava manobras e filmava. Enquanto executava a performance, uma viatura de polícia parou próximo ao local da filmagem e começou uma sequência evolutiva de falas estressantes que pode ser resumida entre ordens para a realização da abordagem, revista e questionamentos do porquê do procedimento. 

A situação evoluiu para falas mais tensas e arma apontada para o ciclista e terminou com o jovem ciclista algemado, mesmo tendo cedido às ordens sem esboçar reação, a não ser o seu questionamento. O detalhe da cena rotineira é o que a torna “natural” ou uma cena “estranha” no Brasil: ser um jovem negro ou um jovem branco. Nas imagens divulgadas, o policial fala energicamente que a ordem é legal e que este é o procedimento. Assim, comecemos pela afirmação da legalidade e dos protocolos policiais quanto à abordagem e revista pessoal. A busca pessoal, a conhecida revista, segundo o Artigo 244 do CPP, é legal quando em flagrante ou com fundada suspeita, isso é, com indícios de crimes. A questão central torna-se o motivo da abordagem com sequência de revista com arma apontada. 

Várias pesquisas realizadas no Brasil já debateram a seletividade durante a abordagem e revistas pessoais. Após o edificante e inspirador trabalho de Silvia Ramos ao analisar as abordagens da PMERJ, outros trabalhos acadêmicos encontraram resultados semelhantes em diferentes regiões do país e em diferentes momentos. A pesquisa realizada em 2009, conduzida pelo Núcleo de estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília, já apontava, entre outros fatores, para questões raciais e territoriais, assim como disciplina do corpo, das ações e das situações eram critérios para a seleção utilizados por policiais da PMDF. 

Em 2014 e em 2019, em várias pesquisas coordenadas pela professora Jacqueline Sinhoretto envolvendo acadêmicos da UFF, UFSCar, da Fundação João Pinheiro em Minas Gerais e da UnB, apontavam para a racialização das relações sociais também se expressa no campo da segurança pública, e, por consequência, nas abordagens policiais. As pesquisas de 2019 constataram que em Minas Gerais, por exemplo, pessoas negras têm 3 vezes mais chance de serem presas que pessoas brancas e 4 vezes mais chance de serem vítima da letalidade policial. Essa taxa de letalidade varia de 3 a 7 vezes em São Paulo. Os dados gerais da pesquisa apontam que há uma visão do potencial criminoso sendo um jovem, negro e pobre.

Todavia, estas diversas situações observadas e analisadas nas pesquisas, em diversas partes do Brasil nas últimas décadas demonstram que o campo de Segurança Pública segue a mesma lógica provocada pela desigualdade estrutural na sociedade brasileiras, pois como já destacava Arthur Trindade Costa, a análise do comportamento policial não pode ser dissociada da análise das estruturas políticas, econômicas, e sociais da sociedade. Entretanto, além das características desiguais desses poderes estruturais, há uma construção jurídica cultural racializada que ontologicamente constitui a formação do campo de controle formal no Brasil e, por consequência, das polícias. Um breve recorte histórico demonstra como que há interligação na lógica seletiva segregadora dos agentes de segurança pública era apoiada em normas que se dissiparam nas práticas cotidianas, saindo do papel e ficando nos atos. 

Como destaca Maíra Zapater sobre a herança legal e sobre as cicatrizes jurídicas, a criminalização de comportamentos de forma seletiva está presente em vários artigos do Código Criminal do Império de 1890, no Decreto nº 847, que regulamentava ações de cunho moral, continuou no Decreto-Lei nº 3.688/41 que traz em seu artigo 59 que “entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita [gripo meu]” seria passível de prisão. O decreto de dois anos depois da proibição legal da escravidão regulamentava ações de pessoas que não ocupam mais o trabalho nas lavouras e nas áreas urbanas, pois havia uma política de embranquecimento do país em curso com estímulo à imigração de europeus do final do Século XIX e início do Século XX. A mendicância também foi tipificada como ato ilegal, revogado somente em 2009. Da mesma forma que jogar Capoeira e Condutas de embriaguez foram tipificadas como ato passíveis de prisão. Flanar pela cidade, divertir-se ou reunir-se para rodas de samba também eram proibidos, pois seriam configurados como prova de vadiagem, como lembra Lira Neto no livro História do Samba. É este diapasão das condições de subsistência e de moralidade que orientava a permissão de quais grupos poderiam participar das atividades da cidade. Os atos tipificados como ilegais eram atos nitidamente das pessoas negras, sejam pelas suas características sócio culturais, sejam pelas condições econômicas, políticas e jurídicas.

Assim, tanto as ações de controle pelos agentes do Estado de 1890 quanto a de 28 de maio de 2021, assim como diversas outras analisadas nas duas décadas do século 21 tem um fio condutor que orienta e que outrora estavam legalmente fundamentadas e que hoje, mesmo na ilegalidade, extrapola os Protocolos Operacionais Padrões porque as estruturas sociais são tão semelhantes quanto a do Brasil Império, com as mesmas permissões e proibições aos mesmos grupos de terem direito ou não à cidade, à cidadania e, em muitos casos, à vida.

 

* 2º Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal, doutor em Sociologia, professor do Instituto Superior de Ciências Policiais (PMDF) e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança (UnB).

 

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