Delegados federais: entre a autonomia e a política
Os delegados têm encontrado na aproximação com a política ou na defesa da autonomia da PF caminhos para a ascensão aos cargos mais altos da corporação e ao primeiro escalão do governo federal
Lucas Batista Pilau*
No último dia 30 de março, Anderson Torres, delegado federal, tomou posse como ministro da Justiça e Segurança Pública. Em um de seus primeiros atos, Torres nomeou Paulo Maiurino à Direção-Geral da Polícia Federal. Ambos apontados como delegados próximos da política brasileira, a chegada de Torres ao MJSP e de Maiurino à DG-PF indicam que as vias de ascensão dos delegados a cargos de prestígios são mais largas e difusas do que imaginávamos. De um lado, podemos situar os delegados atrelados aos discursos de autonomia e de defesa da capacidade “técnica” da instituição. De outro, estão aqueles com largo investimento político em suas carreiras.
O acúmulo histórico pelas instituições judiciais brasileiras em torno do que se pode chamar de “autonomia” reflete as aspirações corporativas de órgãos como Poder Judiciário e Ministério Público para serem vistos ao exterior das demandas do tabuleiro político. Nas últimas duas décadas, com investimentos crescentes do governo federal e a consolidação dos delegados federais no poder no órgão – após embates travados com militares e as demais carreiras da corporação – a Polícia Federal também vem encampando a bandeira da autonomia, em especial aquela sobre suas investigações.
Embora seja uma pauta antiga da instituição, a deflagração da Operação Lava Jato fez com que o discurso da autonomia ganhasse força ao desaguar na mesma retórica da luta anticorrupção. Desde o início dos anos 2000, a PF tem investido na criação de delegacias especializadas no combate à lavagem de dinheiro, em marcar presença junto à Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) e em produzir e propagar a imagem de uma polícia capaz de levar à prisão as elites políticas e econômicas do país. Esses e outros movimentos fortaleceram a posição da PF no campo jurídico e na defesa de recursos corporativos, tais como o inquérito policial e a colaboração premiada.
Em 2019, com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República e a chegada de Sergio Moro ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, vários delegados da Lava Jato de Curitiba ascenderam às principais posições da PF e a cargos no MJSP. Entre eles, como casos representativos, estavam Maurício Valeixo na Direção-Geral da PF, Igor Romário de Paula na Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado (DICOR), Márcio Adriano Anselmo na Coordenação-Geral de Repressão à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (CGRC-DICOR), Erika Mialik Marena no Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) e Rosalvo Ferreira Franco na Secretária de Operações Policiais Integradas (SEOPI).
No entanto, a construção do poder político dos delegados parece nem sempre estar atrelado às suas funções como polícia investigativa e judiciária, havendo aqueles que, durante sua carreira, transitam largamente pela burocracia estatal. Um evento ilustrativo desse fenômeno ocorreu em janeiro de 2020, quando o então DG-PF Maurício Valeixo enviou um ofício à secretaria-executiva do MJSP pedindo que a pasta adotasse medidas para o retorno de policiais federais cedidos ao governo federal, alegando um “déficit preocupante”. Na época, segundo o DG, eram 191 servidores cedidos, sendo que 60 estavam lotados no MJSP.
Segundo dados coletados no Diário Oficial da União (DOU), somente em 2020 foram identificadas 39 cessões e requisições de delegados federais para outros órgãos, confirmando uma preponderância do MJSP como destino desses agentes (48,7% do total de cessões).
Gráfico 01: Cessões e Requisições de Delegados Federais (2020)
Fonte: elaboração do autor, com base em dados coletados no Diário Oficial da União (DOU)
Como os dados coletados indicam, as cessões e requisições de delegados da PF também se estendem para outros domínios do Estado brasileiro, tais como as secretarias de segurança pública dos estados, os tribunais superiores, a presidência da República, o Conselho da Justiça Federal, entre outros. No entanto, ainda sabemos pouco sobre os efeitos desses investimentos políticos realizados pelos delegados ao longo de suas carreiras, em especial as dimensões do contato com movimentos político-partidários e as atividades junto a governos estaduais. Quais os impactos dessa circulação após o retorno dos delegados para a instituição?
Nesse ponto, o próprio ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, foi recrutado diretamente da secretaria de segurança pública do Distrito Federal, do governo de Ibaneis Rocha (MDB-DF). Antes disso, também havia sido chefe de gabinete do ex-deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR), também delegado de carreira. Seu escolhido para chefiar a PF, o delegado Paulo Maiurino, apresenta uma extensa trajetória política, com passagens pela corregedoria do DEPEN, pelos governos do Distrito Federal (gestão Agnelo Queiroz, PT), de São Paulo (gestão Geraldo Alckmin, PSBD) e do Rio de Janeiro (gestão Wilson Witzel, PSC), pela secretaria de segurança do Supremo Tribunal Federal e por uma assessoria no Conselho da Justiça Federal.
Assim, como referiu o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Evandir Paiva, em uma entrevista concedida em janeiro de 2020, uma instituição possuir autonomia e, ao mesmo tempo, a capacidade de influenciar politicamente no Congresso Nacional, seria o “melhor dos mundos”. Fazendo uma releitura de sua resposta, observamos que a diversificação das trajetórias dos delegados em posições de prestígio tem encontrado nesse “melhor dos dois mundos” caminhos amplos para a ascensão aos cargos mais altos da Polícia Federal ou ao primeiro escalão do governo federal.
Na semana passada, o delegado Alexandre Saraiva, da SR-AM, foi trocado logo após pedir ao STF a instauração de uma investigação em desfavor do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Esse evento colocou a PF novamente no centro do debate sobre interferências políticas ou trocas rotineiras, comuns quando novas gestões são iniciadas. Nesses momentos, o que era para ser “o melhor dos dois mundos” – entre a pleiteada autonomia da instituição e a proximidade com a política – pode vir a gerar mais dúvidas sobre a capacidade da PF de se manter afastada de ingerências externas e, ao que só podemos tomar como hipótese nesse momento, se tornar uma arma poderosa para projetos políticos que visem proteger aliados e garantir a perpetuação no poder.
* Doutorando em Ciência Política na UFRGS. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Membro do Núcleo de Estudos em Elites, Justiça e Poder Político (NEJUP/UFRGS)
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