Mortes e silenciamento na rotina de servidores penais
As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil
Maria Palma Wolff*
Felipe Athayde Lins de Melo**
A prisão, como se sabe, não é uma instituição que impacta apenas a vida das pessoas privadas da liberdade; sua repercussão chega também a suas famílias e ao conjunto de trabalhadores que fazem possível a existência desta “fábrica de moer gente”. Todos são por ela afetados, e, ainda que cada um destes grupos tenha sua especificidade, certamente não seria diferente no cenário da pandemia de Covid-19. Então, vejamos.
No dia 8 de abril deste ano, a imprensa de Ribeirão Preto, cidade a cerca de 330 quilômetros da capital paulista, noticiou a morte de três homens que se encontravam presos na penitenciária daquela cidade. Nas redes sociais, “especialistas” correram para expor seus pareceres.
Da tradicional ojeriza aos corpos indesejáveis – “só três, que pena” – chegou-se a mais nova manifestação do desprezo pela vida: o negacionismo pandêmico que nos é apresentado diariamente por aquele que deveria liderar os esforços de enfretamento à Covid-19. “Ué, mas não estão confinados? Isso prova que o isolamento não serve pra nada”.
Dias antes, a cerca de 90 quilômetros dali, a penitenciária de Araraquara registrou, segundo o noticiário, a contaminação de mais de 360 presos. Igualmente, a turba glorificou o caso como demonstração do fracasso das medidas de isolamento social adotadas pela prefeitura municipal.
Em ambas as situações, porém, a imprensa e a administração penitenciária obtiveram enorme êxito em ocultar outro dado da tragédia que caracteriza as prisões no Brasil: os danos e as mortes dos servidores penais causados pela Covid-19.
Desde o início da pandemia, foram publicadas diferentes normas e orientações de prevenção à propagação da Covid-19 em prisões. Em março de 2020, o Departamento Penitenciário Nacional emitiu portaria recomendando, dentre outras medidas, a suspensão das visitas de familiares e organizações da sociedade civil. Por seu turno, o Conselho Nacional de Justiça propôs a flexibilização dos dias de visitas com a concomitante adoção de outras medidas preventivas, que deveriam atingir também os servidores.
Passado pouco mais de um ano, boletim publicado pelo CNJ em abril de 2021, informa que haviam sido realizados em todo o país cerca de 275 mil testes em pessoas presas e menos de 70 mil em servidores penais, num contingente superior a 117 mil trabalhadores. Os dados de contaminação, por sua vez, atingiram a marca de, respectivamente, 51.974 e 18.081 casos, com o registro de 159 óbitos de pessoas privadas de liberdade e, pasmem, 163 mortes de servidores.
Os números, à primeira vista, sinalizam um razoável controle da disseminação do vírus pelos cárceres brasileiros, pois não se observa aqui aquilo que vem ocorrendo, por exemplo, nas prisões americanas, em que se registra uma média de sete mortes ao dia. Os dados, porém, precisam ser olhados com cautela, pois apontam para outros efeitos das medidas que permitem colocá-los em questionamento.
Uma medida adotada em todos os estados foi a suspensão de visitas, o que, supostamente, geraria o isolamento social das pessoas presas. Mas o fluxo dos servidores segue em curso, sem a adequada provisão de itens de prevenção e, principalmente, expostos a novos constrangimentos no exercício do trabalho.
Durante o surto de contaminação na penitenciária de Araraquara, por exemplo, segundo funcionários, ao menos 30 servidores foram infectados. Dentre estes, veio a óbito um diretor. Os casos, contudo, não repercutiram na imprensa e a diretoria do estabelecimento se esforçou em ocultá-los.
Assim, as pessoas afastadas com Covid-19 foram “orientadas” a não reportarem a contaminação em trabalho e servidores contam, inclusive, terem recebido “visitas” domiciliares de seus superiores para reforçar a “orientação” de nada comentar sobre o óbito. Nas palavras de uma servidora, “sequer a morte de um colega de mais de 20 anos nós pudemos chorar”.
As orientações nacionais e internacionais a respeito do enfrentamento à pandemia mais uma vez mostram o distanciamento do cárcere legal e do cárcere real no Brasil, ou seja, do também seletivo cumprimento das leis e das normas. Neste sentido, a proibição das visitas, por exemplo, além de uma medida sanitária, é uma estratégia que contribui para as limitações de transparência dos dados e para manter não só pessoas dentro dos muros, mas também a sua própria realidade.
Ao negacionismo da seletividade de classe e raça sempre existente no sistema penal, da existência de tortura, do não cumprimento da Lei de Execução Penal, das péssimas condições de trabalho, acrescemos a negação do impacto da Covid-19 no contexto prisional e também das consequências para a saúde dos servidores penais.
Tudo isso se soma à tensão e à violência existente no cotidiano de trabalho na prisão e à frustração pela falta de recursos humanos e materiais para o desempenho de suas funções, à falta de serviços de atendimento para a saúde funcional. Agora acrescemos tudo o que representa a pandemia da Covid-19 e seu errático enfrentamento pelas autoridades brasileiras.
*Graduada e Mestre em Serviço Social pela PUCRS, doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais pela Universidade de Zaragoza, Espanha, e pós-doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora e pesquisadora da Faculdade de Serviço Social da PUCRS, atuando nas áreas de direitos humanos, movimentos sociais e políticas sociais.
**Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, onde integra o Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos. É membro fundador do Laboratório de Gestão de Políticas Penais, da Universidade de Brasília. Possui pós-graduação em Gestão de Organizações do Terceiro Setor (Universidade Mackenzie – 2002), graduação em Filosofia (Universidade Estadual Paulista – 1998) e formação em metodologias de trabalho cooperativo pelo GETS/United Way of Canada.
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