As festas clandestinas são problemas políticos
“Dificuldades para cumprir medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil, uma vez que decretos estaduais têm sua eficácia confrontada.”
Alan Fernandes*
A crise mundial causada pela Covid-19 tem impactos inegáveis pelas mais de 300 mil mortes ocorridas somente no Brasil. Não fossem suficientemente desafiadoras as questões médicas envolvidas, as exigências para seu enfrentamento tocam em um ponto central da democracia: a liberdade. Isso porque a restrição de circulação e reunião das pessoas é reconhecida como uma medida relevantíssima para evitar a propagação do vírus.
As dificuldades para dar cumprimento às medidas de isolamento social evidenciam os problemas de exercício da autoridade no Brasil. A autoridade se assenta em regras politicamente legitimadas, escritas em documentos legais, definições essas escassas no que se refere à manutenção de uma ordem social, que, no limite, performam as medidas restritivas contra a pandemia.
Essas questões passaram interditadas nas discussões no país, que não estabelece consensos que possam definir os limites entre autoridade e autoritarismo. Assim, tanto os decretos estaduais, que impõem regras para a circulação e reunião de pessoas, têm sua eficácia constantemente confrontada, o que requer o acionamento do Poder Judiciário, como os instrumentos colocados à disposição dos órgãos encarregados da vigilância mostram-se ineficientes.
As festas clandestinas têm ocupado o noticiário nos últimos dias. Nelas se vê as pessoas se encontrarem em bares, boates, cassinos (?!) e festas a céu aberto, contrariando as normativas legais de proibição da realização desses eventos, pois tais eventos impulsionam a transmissão comunitária do vírus causador da doença. Para dar conta das decisões de enfrentamento à pandemia, o estado tem empenhado seus órgãos dotados de poder fiscalizatório para que evitar que tais reuniões ocorram ou que sejam encerradas.
Em São Paulo, no campo da polícia ostensiva, a Polícia Militar vem atuando em três frentes. Na “Operação Toque de Restrição”, são utilizados os equipamentos de alto-falante instalados nas viaturas para buscar convencer a população a retornar a suas casas no período compreendido entre as oito horas da noite e cinco horas da manhã.
Além disso, em conjunto com outros órgãos, atua no fechamento de estabelecimentos que promovem tais encontros, a cujos responsáveis são impostas multas de acordo com o Código Sanitário de São Paulo, além de medidas criminais relativas aos crimes de desobediência (artigo 330 do Código Penal) e de infração a determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doença contagiosa (artigo 268 do Código Penal).
Aliado a isso, a “Operação Paz e Proteção” busca intervir em reuniões em espaços públicos, mediante critérios que atendam uma conjugação dos riscos envolvidos aos frequentadores e os ativos operacionais disponíveis para o atendimento da ocorrência. Aqui, a estratégia adotada é a ocupação do espaço mediante a obtenção de informações prévias da realização do evento, de forma a evitar que se realize.
Muitas reuniões sociais, que ora constituem problema de saúde pública, tornam-se, para o cotidiano de inúmeras pessoas, um problema cujo enfrentamento é dificultado, porque os órgãos policiais dispõem de mecanismos legais incompletos, o que dá conta de como a questão do que ora denomina-se “festas clandestinas” é um problema já existente em nossa sociedade.
No atual momento, o amparo legal e a concertação de esforços proporcionado pelas regras legais de enfrentamento à pandemia têm trazido algum avanço na governança sobre essa questão, mas que tende a esvair-se tão logo a crise sanitária diminua. Isso em razão da incapacidade normativa do Brasil em estabelecer regras claras, gerais e politicamente legitimadas no que se refere à gestão da ordem pública. Uma das evidências mais assombrosas é o crescente número de mortes em razão do descumprimento do isolamento social, mas, também, a incapacidade de que as medidas adotadas sejam amplamente cumpridas.
A despeito da sempre presente limitação de recursos para um atendimento mais amplo das medidas, levanta-se a questão da própria capacidade institucional de o estado exercer autoridade. A questão da regulação de festas, em espaços públicos ou não, apenas foi evidenciada com a pandemia.
Tomando por base uma determinada região da cidade de São Paulo, as ocorrências cadastradas como “perturbação do sossego público” são a terceira maior em número de chamadas de emergência no ano de 2020. Para o enfrentamento a essa questão, a maior amplitude de medidas sancionatórias, trazida pelo decreto estadual ligado à pandemia, com a imposição de multas pela Vigilância Sanitária, permitiu que a regulação dessa questão fosse mais eficaz que em relação às medidas penais vigentes até então, ainda que se mostrem insuficientes.
A título de exemplo de outras medidas adotadas contra a disseminação do vírus, países como o Chile e a Itália adotaram a expedição de autorização de circulação, com a imposição de multas e prisões. Tais medidas são sequer contempladas no portfólio de ações disponíveis aos tomadores de decisão. Medidas mais severas como essas não encontrariam ambiente político para suas discussões em razão da interdição que temas como esse ocorrem no Brasil.
Se, no transcurso de nossas vidas, os limites entre as liberdades individuais e a coletividade eram mediadas pela informalidade da atuação policial, sem maiores repercussões, agora, as questões de regulação da vida social fazem emergir tais problemas, pois, afinal, os fatos da vida social que acontecem nas franjas da sociedade impactam a todos, indistintamente.
Assim, que a dimensão dessa crise deixe como lição a necessidade inaugurar um debate que construa regras sobre o a gestão da vida social, sem a qual, nem se consegue se promover razoáveis níveis de harmonia social, nem se coíbem os excessos do nível de rua, de forma que, pela sua ausência ou pela sua potência, troquemos autoridade por autoritarismo.
*Alan Fernandes é Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo, doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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