Lava Jato: crônica de uma morte anunciada
“O julgamento da suspeição de Moro e a decisão sobre a incompetência da Vara Federal de Curitiba para julgar os processos contra o ex-Presidente Lula foram somente a pá-de-cal sobre a cova já coberta. “
Arthur Trindade M. Costa*
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo**
Para muitos, as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal marcaram o fim da operação Lava Jato. Na verdade, o fim da operação começou bem antes, com a adesão do ex-juiz Sergio Moro ao governo Bolsonaro, como Ministro da Justiça e Segurança Pública e fiador da confiabilidade do ex-capitão. O julgamento da suspeição de Moro e a decisão sobre a incompetência da Vara Federal de Curitiba para julgar os processos contra o ex-Presidente Lula foram somente a pá-de-cal sobre a cova já coberta. Contribuíram para o sepultamento as revelações da Vaza Jato (Intercept Brasil) sobre as relações promíscuas entre integrantes do MP Federal e o juiz do caso, assim como os acordos entre Bolsonaro e Centrão, pouco interessados no efetivo combate à corrupção.
Com o fim da operação Lava Jato se iniciou um debate sobre qual seria o seu legado. Não há dúvida que a Lava Jato foi um marco no combate à corrupção, ao levar ao banco dos réus importantes empresários e políticos. Mas é necessário lembrar que tivemos outras operações bem-sucedidas nesse tema. Entre 2003 e 2020, a policial federal realizou mais de 1000 operações com foco no desvio de dinheiro público, que levaram à prisão de governadores, deputados e gestores públicos.
Todas essas operações, incluindo a Lava Jato, foram resultado de mudanças institucionais introduzidas a partir de 1988. A Constituição Federal transformou a Polícia Federal em Polícia Judiciária, criou o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. Ou seja, a CF 88 criou o Sistema de Justiça Criminal no âmbito federal. A medida teve enorme impacto no combate à corrupção, uma vez que, dada a proximidade com o poder local, dificilmente a Polícia Civil, o Ministério Publico e o Poder Judiciário nos estados conseguem investigar, processar e punir políticos corruptos.
A década de 1990 foi marcada pela construção e reconfiguração dessas instituições. Foram implantadas Varas Federais e realizados os primeiros concursos para juízes federais. Sérgio Moro foi aprovado num dos primeiros concursos, realizado em 1996. A Polícia Federal aumentou seus efetivos e mudou seu plano de carreiras, para dar mais autonomia às investigações. O Ministério Público Federal começou a ser estruturado a partir de 1993, com a promulgação da Lei Complementar 75/1993.
O período foi marcado também por uma série de leis de combate à corrupção, tipificando de forma mais específica estas condutas e prevendo novos mecanismos de persecução penal. Essas leis são os principais instrumentos utilizados pelos policiais e procuradores para investigar e denunciar esse tipo de delito. Dentre elas destacam-se a Lei 7492/86, sobre crimes financeiros, a Lei 8666/93, que trata dos crimes licitatórios, e a Lei 9618/98 sobre lavagem de ativos.
A década de 1990 também foi marcada pela criação de outras instituições fundamentais para investigação dos crimes de desvio de dinheiro público. Em 1998 foi criado o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), originalmente vinculado ao Ministério da Fazenda. O COAF é um órgão de inteligência financeira destinado a monitorar todas a transações financeiras realizadas no país. Antes disso, em 1996, foi criada a Coordenação-Geral de Pesquisa e Investigação (Copei), a unidade de inteligência da então Secretaria da Receita Federal (SRF). Em 2013, o Banco Central implantou o sistema BACEN JUD, para melhorar a comunicação com o Poder Judiciário. Isso conferiu celeridade no cumprimento das decisões judiciais de requerimento de informações, bloqueio de valores e de monitoramento de transações financeiras.
A operação Lava Jato foi resultado de um processo de aperfeiçoamento institucional. Portanto, o combate à corrupção não começou com ela a Lava Jato e tampouco irá acabar com a sua extinção. Mesmo assim, é interessante analisar como isso aconteceu.
Foi inglório o fim da operação que pretendia livrar o país da corrupção sistêmica. Foram poucos os grupos que lamentaram sua morte. Fosse Lula ou Haddad o Presidente da República, e anunciasse o fim da operação, haveria uma revolta. Grupos iriam para as ruas protestar. Generais fariam discursos e tuites em tom ameaçador. Autoridades do judiciário iriam se manifestar sobre os perigos que isso poderia acarretar.
Não foi o que aconteceu. Muitos apoiadores de Bolsonaro passaram a considerar Sérgio Moro, o super-juiz, um traidor, desde que se voltou contra a criatura. E acreditam que de fato não há mais corrupção no governo, ou que não é relevante frente à ameaça comunista e globalista. Para eles, o país não precisa mais de uma Lava Jato, mas sim de um novo mandato para Bolsonaro, de preferência com salvo conduto para ele e seus filhos contra a interferência do Poder Judiciário.
Os apoiadores de Lula, por motivos óbvios, sempre consideraram Moro um inimigo. Um juiz que perseguiu o partido e sua maior liderança, e criminalizou a atividade política, a serviço de interesses político-partidários. O vazamento dos diálogos entre o juiz e os demais integrantes da força tarefa deslegitimou suas decisões. Entretanto, não se pode esquecer que muitos dos condenados pelo ex-juiz confessaram seus crimes e devolveram o dinheiro roubado. Não custa lembrar que Antônio Palocci, ministro todo poderoso dos governos Lula e Dilma admitiu seus crimes, delatou Lula, e hoje não tem quem o defenda no PT.
Muitos que não nutriam simpatia pelo ex-Presidente ficaram chocados com o vazamento das conversas entre Moro e os procuradores. Até a Ministra Carmen Lúcia, anteriormente defensora da operação, teve de mudar seu voto e admitir a parcialidade do juiz, dando o voto decisivo para a anulação de suas decisões contra Lula. O argumento apresentado por alguns estudiosos do campo jurídico, de que a Lava Jato representava uma salutar renovação das práticas jurídicas, deixando de lado as tendências garantistas em nome de uma maior eficiência no combate ao crime, mostrou-se frágil diante das evidências de que agir de forma ilícita no processo acaba por produzir efetivamente a impunidade, quando as irregularidades são finalmente reconhecidas pelos tribunais superiores.
Uma das poucas vozes que se ouviu lamentando o fim da Lava Jato foi a da grande mídia, especialmente a Rede Globo. Também pudera, ela foi o principal apoiador da operação, cumprindo um papel fundamental para sua legitimação, e sempre alimentada a articulada por Moro. Seria constrangedor ter que fazer mea-culpa nos editoriais dos jornais ou ao vivo nos telejornais. É importante notar que o apoio à operação não foi só uma decisão dos proprietários e editores dos jornais. Vários jornalistas aderiram de forma quase religiosa aos ideais lavajatistas. Publicavam as informações vazadas pelos promotores, policiais, e até pelo juiz, sem ao menos verificar sua veracidade sobre datas, valores, fontes, etc. Aderiram ao discurso dos fins justificam os meios, colocando por terra direitos e garantias sem os quais o processo penal perde sua base de sustentação e legitimidade democrática.
O lavajatismo é uma espécie de tenentismo do século XXI. Como Prestes, Cordeiro de Farias e Juarez Távora, os membros da Lava Jato criaram um movimento de salvação nacional. A exemplo dos tenentes, sua causa era combater a corrupção política. Em ambos os casos, os métodos se revelaram antidemocráticos. A proximidade entre o juiz e os promotores, revelada nas mensagens vazadas, fere o princípio do devido processo legal, previsto na constituição de 1988 e base do Estado de Direito. Da mesma forma, a escuta nos telefones dos advogados de defesa é crime previsto no Código Penal.
Curioso que um dos remédios para estes problemas foi aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2020. Trata-se da criação do juiz de garantias. Embora muitos duvidem, policiais e promotores são capazes de produzir provas robustas através de investigações legais, realizadas sob supervisão de um juiz. Garantindo a lisura da investigação, e afastando provas ilícitas, esta nova figura, já existente em outros ordenamentos, fortaleceria a investigação preliminar ao processo, dando a ela maior valor probatório.
Boa parte das medidas para a melhoria do combate à corrupção se originaram nos debates da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Ativos. Criada em 2003, a ENCCLA é coordenada pelo Ministério da Justiça e reúne representantes de mais de 70 órgãos dos três poderes, tanto em âmbito federal quanto estadual. A partir dos debates entre os diferentes órgãos foi possível articular as atividades do COAF com os trabalhos do Secretaria de Receita Federal e do Banco Central. Também partiram da ENCCLA sugestões para aperfeiçoar a cooperação internacional sobre investigação e recuperação de ativos. Portanto, fortalecer a ENCCLA é fortalecer o combate à corrupção.
Obviamente não basta fortalecer a ENCCLA e as instituições que compõem o Sistema de Justiça Criminal no âmbito nacional. Embora necessárias, as medidas não são suficientes. É preciso aprovar uma reforma do sistema eleitoral que aumente a accountability dos partidos e parlamentares. As normas que regem o financiamento de campanha também precisam ser aperfeiçoadas.
O combate à corrupção depende muito mais do aperfeiçoamento institucional do que dos ideais de um movimento salvacionista. Ao contrário, posturas voluntaristas, à margem do Estado de Direito, minam a legitimidade das instituições e provocam reações entre aqueles que, embora apoiem o objetivo, não podem compactuar com os meios impeditivos do exercício pleno do direito de defesa. Os maiores interessados em desmontar os mecanismos de controle e repressão agradecem.
* Arthur Trindade Maranhão Costa é Professor da UnB, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e editor do Fonte Segura.
** Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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