Militarização da Segurança Pública

FÁBIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de Bolsonaro, enquanto os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e obtiveram conquistas políticas

Renato Sérgio de Lima*

Circulou, na semana que passou, um áudio atribuído a um Policial Rodoviário Federal que acusa o Governo de Jair Bolsonaro de levar adiante um “Lockdown Policial” cujo objetivo, na prática, seria o enfraquecimento das polícias civis, federal, rodoviária federal, penal federal e penais estaduais. Até por isso, para o autor do áudio, há em curso um adiantado plano de militarização da segurança pública no Brasil e de destruição das forças civis de segurança.

Para sustentar a sua hipótese, o autor do áudio argumenta que o governo tem privilegiado as carreiras militares federal e estaduais em detrimento das demais forças policiais. Ele cita a Reforma da Previdência, que teria imposto regras de transição mais severas para as polícias de natureza civil; a Lei Complementar 173, que proíbe reajustes salariais durante a epidemia de Covid-19; e a PEC 186, que adota medidas permanentes e emergenciais de controle do crescimento das despesas obrigatórias e de reequilíbrio fiscal. Ele também menciona a proposta de Reforma Administrativa como um ponto de alerta.

A meu ver, o áudio toca em pontos relevantes da ação do governo no campo da segurança pública e, concordo, há uma clara predileção pelas forças militares federal e estaduais. Mas creio que o cenário seja um pouco mais complexo. Ao que tudo indica, estamos presenciando um movimento de reconfiguração do associativismo policial e um rearranjo entre as lideranças da área. O governo Bolsonaro estaria atuando para eliminar dissonâncias entre sua principal base eleitoral e usa as pautas policiais para se contrapor às demandas liberais de Paulo Guedes pela manutenção do teto fiscal sem, no entanto, romper com o “mercado”.

Assim, entendo que não há o rompimento propriamente dito que foi anunciado pela imprensa na semana passada. É fato que as polícias de natureza civil nunca aderiram integralmente ao projeto de poder de Jair Bolsonaro, não obstante existir um nível grande de convergência ideológica mesmo entre elas. É um sutil paradoxo que precisa ser compreendido pelos analistas da área para que não sejamos abduzidos pelo jogo de marcação.

Se partirmos do reconhecimento desse paradoxo, veremos que há um contraponto de sobrevivência das lideranças sindicais civis tradicionais dado que os segmentos militarizados romperam com o equilíbrio precário das últimas décadas e conseguiram algumas conquistas políticas – por mais que, em termos de carreiras, também não tenham avançado em nada substantivo. Ou as lideranças civis se reposicionam ou são engolidas e superadas por novos atores mais alinhados às expectativas das bases policiais.

Não à toa, de modo sagaz, as críticas mais pesadas partiram de entidades relativamente novas no jogo associativista, que são a UPB e a OPB (Ordem das Polícias do Brasil). Se o rompimento fosse real, as próprias associações individuais estariam assumindo o protagonismo, mas efetivamente elas estão funcionando como anteparo de mitigação e negociação; elas aproveitam a repercussão e reabrem canais de negociação.

Isso não significa que não existam insatisfações crescentes e/ou reclamações pertinentes sobre o abandono de demandas corporativistas. Um exemplo é a explicitação, por parte da Associação de Delegados da Polícia Federal, de não ter nenhum canal de diálogo com o Ministro André Mendonça, da Justiça e Segurança Pública. No entanto, o embate parece ser mais sobre capital político e prestígio de ser ouvido do que sobre o endereçamento de demandas históricas de reforma da arquitetura da segurança pública.

Agora, no que diz respeito às polícias militares, que respondem por mais de 60% dos efetivos policiais do país e seus integrantes são os que mais têm aderido ao projeto de poder do atual presidente, adotaram uma tática diferente. Nesse caso, a opção foi por fortalecer as demandas das corporações, representadas pelos seus Comandantes Gerais, que negociam diretamente com o governo um reequilíbrio de forças e um projeto de autonomização vendido como de blindagem aos usos políticos.

As demandas associativistas estão em segundo plano e o que vale é a lógica militar clássica. O maior exemplo é o Projeto de Lei Orgânica das PM, que data de 2001, mas que na última segunda (16), teve um novo relator designado, o deputado do Capitão Augusto (PL/SP) que deve apresentar o substitutivo que está sendo negociado com o governo o mais rápido possível. Vale lembrar que o nome do Capitão Augusto já circulava como o relator ideal desde o início de 2020 e fazia parte de um pré-acordo com o então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.

Seja como for, o conteúdo do PL é extremamente concentrador de poderes nos oficiais das Polícias Militares e pouco avança sobre condições de vida e trabalho dos policiais militares. O foco das minutas de substitutivos que estão circulando está muito mais dedicado ao desenho de estratégias de autonomização das corporações dos governos estaduais e dos mecanismos de controle civil.

Por tudo isso, a novidade das pressões em torno do “rompimento” dos policiais com o governo não está no seu valor de face, ou seja, num fato indiscutível. O que estamos vendo é um movimento de pressão que visa reconfigurar o campo para que os policiais passem a fazer uma defesa inquestionável do governo ou, caso contrário, para que lideranças civis que atuam na chave sindical de modo mais isento e crítico sejam substituídas por novos e mais alinhados nomes. Esses já aparecem como os salvadores das categorias e devem rivalizar com nomes que há muito ocupam posições nas associações.

 

*Sociólogo e Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

 

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