O reconhecimento fotográfico em delegacias
Apesar da ausência de previsão legal para utilização como prova, recurso é muito empregado. Debate sobre possíveis erros judiciais precisa ser ampliado
Mauricio Garcia Saporito*
A pedido do Programa Fantástico, da TV Globo, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), com o indispensável apoio da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), realizou um estudo sobre a utilização de reconhecimentos fotográficos em sede policial. O objetivo era apontar possíveis falhas na utilização daquele meio de prova enquanto formador da culpa em processos criminais.
Durante os meses de novembro e dezembro de 2020, defensoras públicas e defensores públicos estaduais com atuação criminal encaminharam à diretoria de pesquisas da DPRJ casos que envolvessem necessariamente três requisitos: o reconhecimento pessoal em sede policial ter sido feito por fotografia; o reconhecimento não ter sido confirmado em juízo; a sentença ter sido de absolvição.
Cabe ressaltar que o recorte da pesquisa tinha que envolver absolvição, logo, em 100% dos processos analisados houve o reconhecimento e acusação formal de uma pessoa declarada inocente por sentença judicial.
Foram relacionados na pesquisa 28 processos com 32 acusados, já que em quatro processos haviam dois acusados. A lista dos processos abrangeu dez estados brasileiros, sendo 13 casos do Rio de Janeiro, três da Bahia; dois casos cada para os estados de Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina e São Paulo; e um caso por estado para Mato Grosso, Paraíba, Rondônia e Tocantins. A distribuição dos processos aconteceu entre 2012 e 2020.
Quanto aos crimes imputados, a pesquisa encontrou dois homicídios consumados, um homicídio tentado e um furto. Os demais foram acusações pelo crime de roubo.
Digno de ser muito ressaltado foi a cor da pele das pessoas reconhecidas por fotografia e posteriormente absolvidas. Apenas 17% dos submetidos aos reconhecimentos fotográficos eram brancos. Todos os demais 83% eram de cor negra que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), inclui pretos e pardos.
Outro dado alarmante se refere ao uso da prisão preventiva. Em 19 casos a prisão cautelar foi decretada. O tempo de segregação variou muito, de 24 a 851 dias, o que significa que um dos acusados ficou preso por aproximadamente dois anos e três meses com base apenas em um reconhecimento pessoal por fotografia realizado durante a investigação policial.
Durante a análise, ganharam destaque três episódios que demonstraram como o reconhecimento, pessoal ou fotográfico, mesmo com todos os riscos inerentes às provas dependentes da memória, acaba sendo considerado suficiente para se levar alguém a julgamento.
No primeiro caso destacado, a vítima reconheceu uma pessoa que estava presa na data do crime. A autoridade policial responsável pela investigação sequer diligenciou junto ao sistema informativo da Secretaria de Administração Penitenciária para descobrir que aquela pessoa indiciada não poderia ter participado de nenhum fato criminoso fora do ambiente carcerário.
No segundo destaque, a vítima teria reconhecido a fotografia de uma pessoa monitorada eletronicamente. Novamente o delegado de polícia poderia ter pedido o rastreamento da tornozeleira para comprovar a hipótese acusatória, o que não aconteceu.
Por fim, o estudo destacou o reconhecimento de uma pessoa que estava no exterior na data do crime apurado. Tudo comprovado nos autos. Não é crível que o delegado de polícia responsável pela investigação não pudesse ter acesso a esses dados, que poderiam ter sido facilmente entregues pela Polícia Federal.
A verdade é que, analisando todos os processos relacionados, podemos concluir, sem nenhum medo de errar, que apesar da ausência de previsão legal para a realização de reconhecimentos fotográficos como prova, ele ainda é muito empregado e, ressalte-se, sem nenhum critério. Sequer sabemos como essas fotos foram tiradas e como são apresentadas.
Outro ponto importantíssimo é que, realizado o reconhecimento, as autoridades policiais desistem de outras diligências necessárias à elucidação do crime, entendendo que materialidade e autoria estão devidamente comprovados.
A intenção do relatório não foi e nem é atribuir culpa a esse ou àquele ator do sistema de justiça penal, mas sim que seja ampliado o debate sobre a possibilidade de erro judicial e da limitação do que hoje é considerado prova no processo penal. Que estudos com tamanha profundidade sejam o ponto de partida para preenchermos a lacuna deixada pelo livre convencimento motivado, permitindo seu melhor controle em todas as fases da persecução penal.
*Defensor Público do Estado da Bahia, coordenador da Comissão Criminal Permanente do Condege (Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais).
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Na edição desta semana, leia também “Fundo Nacional de Segurança Pública tem gasto recorde em 2020” e “Violência doméstica e Covid: desafios para o acesso das mulheres à Justiça”.