A regulação do mercado da maconha no Uruguai
Três anos após sua implementação integral, o modelo de regulação uruguaio parece responder às expectativas de funcionamento. Apesar de alguns obstáculos, os usuários têm aderido ao mercado formal proposto pelo governo.
Laura Girardi Hypolito*
Em 2013, o Uruguai se tornou o primeiro país a aprovar um modelo de regulação do mercado da maconha em nível nacional com o controle da produção, venda e consumo reservados ao Estado. O projeto de lei surgiu a partir de uma iniciativa do Poder Executivo do país em 2012, durante o mandato do então presidente José Mujica, dentro de um contexto de expansão da agenda de direitos individuais e também de resposta ao aumento dos índices de violência e criminalidade no país.
No contexto de atuação do governo no sentido de enfrentar problemas relacionados à segurança pública, é criada a Estrategia por la Vida y la Convivencia, um pacote de quinze medidas para abordar a questão da segurança no país. Dentre estas estavam propostas como alterações sanitárias vinculadas ao atendimento de usuários de drogas, mudanças associadas aos problemas de corrupção policial e falta de transparência nas atividades da polícia, planos vinculados à diminuição da violência doméstica, propostas de fortalecimento do tecido social e medidas com a finalidade de intervir nas cidades para promover espaços de integração entre diferentes grupos sociais. E, dentre estas quinze medidas, estava a proposta de legalização regulada e controlada da maconha no Uruguai.
Assim, em 2013, a Lei 19.172 é aprovada no Uruguai e o Estado passa a assumir o controle e a regulação das atividades de importação, exportação, plantação, cultivo, colheita, produção, aquisição de qualquer forma, armazenamento, comercialização e distribuição de cannabis e seus derivados, ou cânhamo quando correspondente. Com a finalidade de supervisionar todo o processo, foi criado o Instituto de Regulación y Control del Cannabis (IRCCA).
É importante salientar que a lei de regulação da maconha configura uma exceção dentro da lei geral de drogas vigente no Uruguai. Deste modo, ainda que o país nunca tenha criminalizado o consumo e porte de nenhuma substância considerada ilícita, a nova lei estabelece um regime especificamente para permitir as atividades previstas pelo modelo regulador da cannabis.
A partir da vigência da lei, o consumo da maconha com fins recreativos é assegurado aos usuários do país mediante três modalidades de acesso previstas na lei: o cultivo doméstico, os Clubes de Membresía Cannábicos e a compra em lugares autorizados (farmácias). As autorizações são permitidas às pessoas capazes, maiores de idade, com cidadania uruguaia natural ou legal, ou aos que possuírem comprovação de residência fixa no país. Além do mais, cada consumidor só pode ter acesso legal à droga através de uma das três vias de permissão.
A legislação fixou quantidades específicas para cada um dos três casos. Em relação ao cultivo doméstico para consumo pessoal, a lei estabelece o cultivo de até 6 plantas com efeito psicoativo por residência, sendo permitida uma produção anual de no máximo 480 gramas. Aos cultivadores também é autorizada a posse de materiais que cumpram com a função do cultivo, da colheita e do armazenamento. Os Clubes de Membresía Cannábicos podem ter no mínimo 15 e no máximo 45 sócios e têm permissão para o cultivo de até 99 plantas e uma produção máxima de 480 gramas anuais por membro. Referente ao acesso por meio da compra em farmácias, os usuários podem adquirir 10 gramas semanais, ou até 40 gramas por mês.
O texto legal determina uma série de mecanismos de controle, dentre os quais são apontados como principais: venda proibida para menores de idade, sanções para aqueles que dirigirem sob os efeitos da droga, e também para os que a produzirem sem prévia autorização. Além de diretrizes adotadas para o uso, muito semelhantes com as já aplicadas para o tabaco – a conduta está sujeita às normas de consumo em espaços públicos e a publicidade é vedada.
Após cerca de sete anos desde a aprovação da lei – e três anos desde o início de sua implementação integral – ao que tudo indica o modelo uruguaio de regulação parece estar respondendo às expectativas de funcionamento. Não obstante alguns obstáculos relacionados com a institucionalidade do modelo, como a baixa adesão por parte das farmácias e a resistência anunciada por algumas instituições financeiras, os usuários têm aderido ao mercado formal proposto pelo governo.
De acordo com os dados mais recentes publicados pelo IRCCA, em outubro deste ano 42.614 pessoas já estavam registradas para compra através das farmácias e 9.106 para o cultivo doméstico. Além disso, 156 Clubes de Membresía já estavam devidamente cadastrados, somando um total de 4.939 membros. Estes números, que são muito significativos, demonstram que o modelo de regulação tem recebido aderência por parte dos usuários, de modo que mais de 60% dos consumidores uruguaios já acessam a droga pela via legal.
No campo da segurança pública, cabem algumas considerações. Ainda que existam tentativas em associar o aumento das taxas de homicídio no país no ano de 2018 com a regulação do mercado da maconha, não existem evidências que corroborem essas alegações. Um estudo publicado em dezembro de 2019, promovido pela Junta Nacional de Drogas e pelo Observatório Uruguaio de Drogas, apresentou importantes resultados sobre o impacto da Lei 19.172 e demonstrou que não existem evidências que possam associar a regulação do mercado da maconha como uma causa desse aumento.
Em contraponto, a pesquisa que monitorou a evolução da regulação a partir de seus três objetivos principais – saúde, segurança e repressão – demonstrou que a alteração na atividade policial, que passou a atuar de maneira mais repressiva em relação ao mercado ilegal, bem como o aumento das disputas internas, visto que o mercado formal da cannabis limitou as chances de crescimento do narcotráfico, podem estar relacionadas ao aumento dos indicadores de violência no mercado de drogas informal e, como consequência, nas taxas de homicídio. A pesquisa também demonstra que no período analisado também houve aumento nas taxas de consumo, expansão do mercado informal da cocaína e uma diminuição dos aprisionamentos femininos por tráfico.
Visto que se passaram apenas três anos desde a implementação integral do modelo de regulação da maconha no país, ainda não é possível afirmar resultados estruturais. Como toda política pública, o tempo é peça chave para que avaliações concretas sejam realizadas. No entanto, já é possível afirmar que desde a proposição do projeto de lei de regulação e sua posterior aprovação, os olhos do mundo se voltaram para o Uruguai, que se tornou uma das principais referências no movimento antiproibicionista global.
*Laura Girardi Hypolito é advogada, doutoranda em Ciências Criminais na PUCRS e pesquisadora vinculada ao GPESC.
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Na edição desta semana, leia também: “Narcotráfico e assassinato de mulheres” e “Morte no Carrefour e a responsabilidade penal de pessoas jurídicas”.