O controle da segurança privada no Brasil é fictício

Danilo Verpa/Folhapress
Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A Polícia Federal, a quem compete regular a atividade, não tem condições e nem pessoal suficiente para desempenhar esse papel. Também não pode multar ou criminalizar serviços irregulares, pois não há previsão legal para isso no país.

 

Cleber da Silva Lopes*

Em setembro de 2019, logo após a abjeta tortura de um jovem negro dentro de um supermercado de São Paulo, publiquei na seção Múltiplas Vozes do Boletim Fonte Segura um artigo sobre os abusos cometidos por profissionais de segurança privada. Na ocasião, atribui os problemas existentes a déficits de controle sobre o setor. Pouco mais de um ano depois, mais um caso de abuso infame contra um cidadão negro ocorre em outro supermercado, desta vez uma loja do Carrefour de Porto Alegre. Como nada mudou em relação ao controle da atividade de 2019 para cá, retomo o argumento central desenvolvido no artigo anterior.

Os mecanismos mais capazes de gerar serviços de segurança privada controlados estão localizados no interior das organizações de segurança, que estão em condições de saber e acompanhar o que seus funcionários fazem. Para que esse controle ocorra, essas organizações precisam estruturar sistemas internos comprometidos com a obtenção de serviços que sejam, ao mesmo tempo, eficientes para os clientes e respeitosos dos direitos humanos dos cidadãos.

Estudo que realizei na Região Metropolitana de Paulo no começo da década de 2010 mostrou que os clientes que tomam serviços no mercado são os principais atores capazes de afetar a maneira como empresas de segurança controlam seus funcionários. Quando os clientes demandam serviços de qualidade e respeitosos dos direitos humanos, o policiamento privado tende a ser executado com profissionalismo. Isso ocorre porque os clientes podem escolher os provedores de segurança que mais lhe agradam, substituindo aqueles cujos funcionários incorreram em desvios.

Mas os controles de mercado são falhos. Problemas ocorrem quando os tomadores de serviços querem reduzir custos, contratando empresas que não controlam adequadamente os seus funcionários; ou quando demandam ou toleram serviços de segurança privada agressivos ou pouco comprometidos com os direitos humanos. Nesses contextos, a tendência é que haja uma empresa de segurança disposta a entregar o que o contratante deseja.

As falhas nos controles de mercado descritas acima têm acometido o setor supermercadista brasileiro de maneira dramática. Para entender essas falhas, é preciso contextualizar a natureza das demandas por segurança privada nesse setor. Segundo a 20ª Avaliação de Perdas no Varejo Brasileiro de Supermercados (ABRAS), os supermercados brasileiros amargaram perdas da ordem de R$ 6,9 bilhões em 2019, o equivalente a 1,82% do faturamento bruto das empresas. O furto externo praticado por consumidores foi a segunda causa de perdas (17% do total), atrás apenas das perdas decorrentes de quebra operacional (39%). É nesse contexto que os serviços de segurança privada são demandados, sempre com o objetivo primário de aumentar o lucro líquido dos negócios. Diante dessas demandas, o compromisso com os direitos humanos, ao que parece, tem efetivamente ficado em segundo plano em muitos supermercados.

Para que o controle da segurança privada ocorra, é fundamental que tenhamos um ambiente regulatório no qual a sociedade e o Estado sejam capazes de aumentar os custos dos desvios de conduta tanto para prestadores quanto para tomadores de serviços, induzindo o controle do cliente e o autocontrole por parte das empresas. Esse ambiente regulatório também precisa ser igualmente capaz de gerar normas e incentivos para melhorar a qualidade dos serviços de segurança privada.

O vigor das reações da mídia e dos movimentos sociais ao assassinato de Beto Freitas são exemplos de como a sociedade pode controlar o setor, impondo danos reputacionais e econômicos a prestadores e tomadores de serviços. Mas é preciso não superestimar a importância desses mecanismos, que tendem a ser reativos e funcionar apenas diante de abusos dramáticos, persistentes ou que recaem sobre pessoas ou grupos em condições de realizar pressão.

O controle estatal via judiciário é outra forma de aumentar os custos dos desvios de conduta dentro do setor. Além da responsabilidade na esfera criminal que recairá sobre os autores do assassinato de Beto Freitas, a empresa de segurança e/ou o Carrefour provavelmente também serão responsabilizados na esfera civil, onde serão constrangidos a indenizar a família da vítima. Entretanto, estamos novamente aqui diante de um controle reativo, cujo sucesso depende de um processo judicial com desfecho favorável.

O controle estatal via regulação é o que está em melhor condição de induzir o controle no mercado de segurança privada. Entretanto, esse controle não tem funcionado a contento no Brasil. A Polícia Federal, que fiscaliza o setor, dispõe de poucos recursos para responsabilizar empresas cujos funcionários tenham cometidos abusos e para inibir aquelas que atuam clandestinamente, muitas das quais de propriedade de policiais ou parentes. Ela não pode multar ou criminalizar tomadores e prestadores de serviços de segurança irregular, pois não há previsão legal para isso. Mesmo que pudesse, não haveria recursos humanos para fiscalizar o amplo mercado clandestino. Para os casos de abusos cometidos por seguranças regulares, as regras existentes também não preveem nenhum tipo de sanção às empresas e/ou contratantes.

Para prevenir os abusos cometidos no setor de segurança privada, precisamos repensar a regulação estatal da segurança privada. Essa regulação precisa ser capaz de induzir os controles de mercado (autocontrole das empresas e controle dos clientes), corrigindo as falhas existentes. Exigir treinamentos mais extensos sobre o uso proporcional da força, códigos de conduta e o uso de armas menos letais em postos de serviço nos quais os seguranças estão em contato com os cidadãos são tópicos que precisam ser discutidos, assim como meios de controlar o mercado clandestino de segurança e a participação de policiais nele. Com a palavra o Senado, onde um novo marco regulatório para a segurança privada encontra-se atualmente em tramitação.

*Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS).

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