Brasil, uma nação de mortos-vivos

Vinicius Torres Freire na Folha, hoje (23), foi perfeito em sua coluna sobre o momento em que o Brasil vive e sobre a capacidade do presidente Jair Bolsonaro em se revigorar no caos criado a partir de sua eleição. Freire afirma que diante de todas as adversidades, o presidente tem conseguido vitórias e se fortalecido. E, ao final, ele diz que, o mais provável para o país, é que “o Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana”.

Peço licença a Vinicius Torres Freire para aproveitar suas figuras de linguagem, pois, a meu ver, o seu argumento é irretocável, exceto por um certo otimismo em achar que o país “voltará” à sua rotina de violência e indiferença. Pelos dados disponíveis, o Brasil nunca abandonou tal rotina e, o que ocorre agora, é que o bolsonarismo foi promovido à condição de políticas de governo. Mas a mentalidade ‘bolsonariana’ esteve e está presente entre nós faz décadas. A mão do “morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento” está na verdade viva e se faz de morta para puxar o gatilho que continua a vitimar milhares de vítimas de homicídios e para apunhalar a democracia e a cidadania.

E isso fica ainda mais evidente quando constatamos que, mesmo em uma pandemia, os homicídios cresceram cerca de 6% no primeiro semestre de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. E, talvez o mais significativo, é que já são nove meses de crescimento ininterrupto dos homicídios, segundo dados do Monitor da Violência recentemente divulgados. Os homicídios cresceram em 17 estados do país, incluindo São Paulo, que vinha de 20 anos de reduções sucessivas dos homicídios. Houve, em São Paulo, um aumento de 4,7% no mesmo período.

E isso sem contar as Mortes Decorrentes de Intervenção Policial, que, somente no estado, cresceram mais de 20% no primeiro semestre deste ano. A mesma coisa se repete com a violência contra a mulher, que segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aumentou durante a Pandemia, mas já vinha de um longo ciclo de crescimento anual. Aliás, o FBSP alerta, faz 14 anos, para a falência do modelo de organização da segurança pública brasileira, e nos próximos dias deverá lançar a edição 2020 do Atlas da Violência, uma parceria com o IPEA, com dados que, mais uma vez, explicitará as recorrentes indiferença política e a naturalização da violência contra negros, mulheres, jovens, população LGBTQI+.

Indiferença que naturaliza, por sinal, o fato de 54% dos registros de estupros no Brasil serem de casos com vítimas com até 13 anos de idade. Crianças sem infância e reféns de uma cultura do estupro são criminalizadas por defensores dos bons costumes e da moral conservadora quando buscam seus direitos, como a menina que foi autorizada a fazer um aborto legal no Espírito Santo, sem que, no entanto, lembremos que a violência está presente no nosso cotidiano como uma das nossas marcas históricas mais perversas.

Violência que aceita a brutalidade policial nas periferias, em geral contra pardos e pretos, quase todos pobres, como na sequência de casos envolvendo a Polícia Militar de São Paulo, que a massificação das câmeras de celulares permitiu que chegasse ao conhecimento da opinião pública mas que não é novidade nenhuma nas “quebradas” paulistanas, nas favelas cariocas e/ou nas várias denominações dos bairros pobres das cidades brasileiras. Violência tão naturalizada que nos faz indiferentes ao fato dos jovens negros terem 2,5 vezes mais chances de serem assassinados e, em uma expressão carioca, ao fim e ao cabo, terem como horizonte de vida a convivência cotidiana com o temor de serem presos ou mortos em operações policiais (operações que, por sinal, colocam os próprios policiais em risco e cujos comandantes, quando questionadas, se eximem de responsabilidade e deixam o policial da ponta com o ônus exclusivo de justificar a sua conduta individual).

Violência que dizima indígenas em nome do combate ao tráfico de drogas ou que é perpetrada na defesa de um modelo de agronegócio predador, que desconsidera inclusive os avanços tecnológicos que um segmento mais moderno e consciente desenvolveu para o uso social, econômica e ambientalmente responsável de terras; incentiva a desregulação e desmonta a já precária capacidade fiscalização ambiental das instituições públicas. O caráter estratégico da Amazônia vira sinônimo de paranoia e não de planejamento responsável e análise geopolítica e ambiental de riscos efetiva, sem cabrestos ideológicos.

Violência que produz situações bizarras como mais de 30 anos de domínio cruel de territórios com milhões de brasileiros e brasileiras por facções de base prisional ou de milícias e, ao mesmo tempo, petições do Governo do Rio de Janeiro e do Ministério da Justiça e Segurança Pública contra a proibição de operações policiais em comunidades do Rio durante a pandemia que se utilizam de argumentos que beiram o surrealismo, na medida em que são tão exatos para dimensionar ameaças que justificariam tais operações como vagos para explicar as razões pelas quais outros padrões de policiamento, menos violentos e baseados na inteligência, não são adotados.

Inteligência que, nos escaninhos do poder, deu guarida à produção do dossiê contra ex-secretários e policiais antifascistas pela SEOPI (Secretaria de Operações Integradas) e que foi considerada irregular pelo STF, enquanto não há conhecimento acumulado para se compreender as causas dos homicídios e que faz com que, eternamente, fiquemos em uma disputa narrativa entre aqueles que acreditam no peso do crime organizado e os que defendem que as tendências criminais são resultado ou de políticas públicas ou de macrocausas econômicas e demográficas.

Indiferença que torna a violência cotidiana e já visível para milhões de brasileiros em algo intangível e invisível às instituições, que se preocupam mais com seus interesses corporativistas do que com a mudança do cenário de crime e violência – isso para não dizer no liberou geral das armas de fogo em curso no país. Indiferença que se fortalece nas tentações autoritárias de uma sociedade acostumada com a ideia de inimigos internos e cujas preferências antidemocráticas estavam dadas muito antes do Governo Bolsonaro.

O bolsonarismo do presente não é algo exclusivo à figura de Jair Bolsonaro. É, infelizmente, um modo de ser e de pensar que tem a adesão de milhões de pessoas e que nos faz refletir sobre quanto anos serão necessários, na melhor das hipóteses, para que a cidadania e a vida sejam valores que refundariam uma nação tão perversamente dócil com a violência e o caos. Os mortos-vivos seríamos nós e não a mão descrita de Vinicius Torres Freire.