30 anos do ECA, Covid-19 e o Sistema Socioeducativo
Nesta semana, na última segunda, 13, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completou 30 anos. E esta marca foi alcançada bem no meio da maior crise sanitária e institucional em muitos anos.
Com Ana Claudia Cifali e Mariana Chies Santos*
O ECA é um marco histórico construído a várias mãos, com intensa participação da sociedade civil, instituições estatais e das próprias crianças e adolescentes. Com ele, passamos a contar com uma legislação própria que reconhece esse público como sujeitos de direito, demandando medidas em respeito à sua condição peculiar de desenvolvimento. Se, por um lado, temos que comemorar a edição desse marco legal de proteção às crianças e aos adolescentes, por outro ainda temos muito trabalho para a efetivação dos direitos dessa parcela da população brasileira.
O Altas da Violência dá conta de que 51,8% dos óbitos de adolescentes e jovens entre 15 e 19 anos se deu por homicídio, em sua grande maioria, jovens pretos e pardos, moradores de comunidades vulneráveis e com pouca escolaridade[1]. Esses dados têm uma relação direta com o tráfico de drogas e as “guerras” que se dão tanto no enfrentamento com a polícia como entre os próprios grupos criminais. Ainda nos atentando aos dados, é importante ressaltar que São Paulo tem reduzido a taxa de homicídios da população em geral, principalmente se olharmos para os dados entre 2008 e 2017.
Contudo, nesse mesmo período, a taxa de homicídios de adolescentes de 15 a 19 anos oscilou de 19,1 para 19,6, ou seja, significa dizer que mais de 6.800 adolescentes entre 15 e 19 anos foram vítimas de homicídios entre 2008 a 2017. E, apenas no ano de 2017, 623 adolescentes e jovens de 15 a 19 anos foram assassinados no estado de São Paulo. Mas esse número não é distribuído de forma igualitária: o risco de ser assassinado aumenta entre os adolescentes pretos e pardos. A taxa de homicídios de adolescentes negros era de 23,5 mortes, enquanto a taxa de homicídios de adolescentes brancos era de 13,4 mortes por 100 mil. Isso significa que a probabilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio era 75% maior do que a de um adolescente branco no ano de 2017.
Ao que se refere à pandemia causada pelo vírus SARS-COV-2, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou documento recomendado aos juízes e juízas e aos tribunais de justiça que se atentassem para o que a doença poderia causar nos sistemas de privação de liberdade. A Recomendação nº 62 do CNJ, publicada em março deste ano, foi uma medida importante para que os atores do sistema de justiça abrissem os olhos para a gravidade do impacto que o coronavírus poderia trazer às pessoas privadas de liberdade e aos/às servidores/as que gestionam o sistema privativo de liberdade no Brasil.
No âmbito do sistema socioeducativo, as atividades socioeducativas, entre elas a escolarização, foram suspensas, esvaziando sobremaneira o conteúdo pedagógico que deve permear o cumprimento das medidas socioeducativas. As visitas foram suspensas, assim como as fiscalizações dos órgãos externos, reduzindo-se o controle social sobre o que acontece no interior das unidades de internação. Elevam-se o número de óbitos e contágios, especialmente entre profissionais do sistema socioeducativo, motivo pelo qual é fundamental que sejam tomadas medidas para conter o avanço do contágio no interior das unidades de atendimento, inclusive adotando-se medidas para reduzir a superlotação das unidades de atendimento, como já havia decidido em sede de liminar o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do HC nº 143.988.
Todavia, poucas medidas concretas foram adotadas de maneira sistemática por todos os estados da federação, e isso se comprova se olharmos para os dados disponibilizados pelo próprio CNJ. Os dados apontam que, até 06 de julho, foram registrados 1.815 casos confirmados de COVID-19 no Sistema Socioeducativo: 437 adolescentes e 1.378 servidores/as. Em 30 dias, houve um aumento de 139,1% dos casos. Foram confirmados, ainda, 14 óbitos de profissionais que atuavam no sistema.
No dia 09 de julho de 2020, nove Deputados Federais de diferentes partidos (Alexandre Padilha – PT/SP; Carmen Zanotto – CIDADANIA/SC; Eduardo Barbosa – PSDB/MG; Leandre – PV/PR; Marcelo Freixo – PSOL/RJ; Tabata Amaral – PDT/SP; Valmir Assunção – PT/BA; Fábio Trad – PSD/MS; João H. Campos – PSB/PE), apresentaram o Projeto de Lei 3.668/2020, que regulamenta a manutenção do conjunto de princípios que envolvem o Sistema Socioeducativo durante o período da grave crise sanitária causada pela Covid-19.
Entre as medidas para fazer frente a esses problemas, estão a) a criação de Planos Emergenciais e a adoção de medidas de higiene; b) a reavaliação de medidas de internação (que, geralmente, ocorre de 6 em 6 meses) de jovens vulneráveis ao contágio e aqueles a quem se atribua atos infracionais cometidos sem violência ou grave ameaça, com a finalidade de reduzir-se a superlotação; c) a suspensão de medidas em meio aberto que demandem deslocamentos, contrários ao distanciamento social, mas garantindo a manutenção do vínculo entre técnicos e adolescentes por outros meios de comunicação; d) a adoção de Centrais da Vagas para regular a entrada e saída de adolescentes, como forma de combate à superlotação; e) a reorganização das atividades socioeducativas, especialmente as de educação; f) a manutenção das fiscalizações externas, sobretudo no caso de denúncias de violação de direitos.
Nesse contexto, o Projeto de Lei 3668/2020 é de extrema relevância ao indicar ações de contingência e medidas de saúde preventivas a serem adotadas no Sistema Socioeducativo para que o vírus não se propague e atinja ainda mais adolescentes, jovens e trabalhadores, considerando-se, ainda, que é papel do Estado zelar pela vida e integridade física de tais pessoas. Ademais, importante que sejam pensadas medidas relativas ao retorno das atividades educativas, tendo em vista os objetivos das próprias medidas socioeducativas, as quais, sem o conteúdo pedagógico, transformam-se em puras e simples medidas privativas de liberdade. E não é isso que queremos para o futuro do Brasil.
Nesse sentido, também é urgente o desenvolvimento de políticas públicas, especialmente nos territórios de maior vulnerabilidade, que previnam a evasão escolar e o envolvimento da juventude com o tráfico de drogas, com destinação orçamentária privilegiada para garantir os direitos dessa parcela da população, conforme preconiza a regra da prioridade absoluta prevista no artigo 227 da Constituição brasileira, a base normativa para o desenvolvimento do ECA.
[1] IPEA; FBSP. Atlas da Violência 2019. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf>.
*Ana Claudia Cifali, Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, é Advogada do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana;
Mariana Chies Santos, pesquidadora de pós-doutorado do NEV-USP e Coordenadora do Departamento de Infância e Juventude do IBCCRIM