Os rumos da segurança pública na era Bolsonaro

Ao longo dos últimos meses o tema segurança teve, como era esperado, forte destaque no debate público. Porém, mesmo em evidência, a área ganhou esse destaque mais pelas questões político-institucionais a elas associadas do que em função de uma discussão sobre redução da violência, do medo e do crime. Para entender as razões dessa dissonância, este texto aproveita reflexão feita para o Boletim Fonte Segura, mantido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para fazer um retrato panorâmico de alguns dos principais temas da agenda da área.

E o resultado é bastante preocupante e fonte de inquietudes, na medida em que percebemos que evidências foram mobilizadas e vários alertas foram emitidos mas poucas mudanças efetivas ocorreram. A começar pelo fato de o país não conseguir superar um cenário que tem se repetido nos últimos 30 anos, ou seja, um cenário que faz com que as políticas de segurança pública sejam formuladas e implementadas como que inseridas em um eterno pêndulo entre aqueles que acreditam segurança é efeito de macrocausas sociais e econômicas e os que preferem reduzir todos os problemas da área à eficácia do direito penal e do processual penal. Não construímos uma ética pública capaz de interditar a violência e guiar o país em direção a um modelo mais eficiente de controle do crime e garantia de cidadania.

Só mais recentemente começamos a falar de governança da segurança; de mudanças de gestão e de regras do jogo que pudessem criar condições para um ambiente de prevenção da violência, redução do medo e repressão qualificada do crime. Afinal, o Brasil possui um modelo de organização da segurança pública que gera, como tenho chamado atenção em outros artigos, diversos ruídos federativos e republicanos. Temos quase 1400 organizações públicas cujas atividades impactam diretamente na qualidade da segurança pública e não temos mecanismos robustos de coordenação de esforços entre órgãos de Estado, Poderes e esferas de governo. Ao contrário do SUS, na Saúde, a União não tem atribuição legal para coordenar o sistema de segurança como um todo.

Isso faz com que as Polícias Militares, por exemplo, atendam cerca de 150 milhões de ocorrências todos os anos no país e, em um looping sem fim, tenham que encaminhar para as Polícias Civis, Ministério Público e Poder Judiciário algo como 10 milhões desses atendimentos a cada ano. Temos números gigantescos e quase nenhuma articulação sobre como lidar com tal magnitude de casos, sendo quase tudo tratado da mesma forma – de um furto de um shampoo ao roubo de um carro forte, passando pela detenção de pessoas com pequenas quantidades de drogas. É quase impossível não saturar o sistema de justiça criminal, ainda mais quando cada instituição ou Poder define qual suas metas e planos de ação.

E, mesmo quando metas e planos existem, eles ficam dependentes de prioridades e lideranças políticas e/ou são fruto de articulação de organismos internacionais como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que buscam influenciar o rumo e o sentido de políticas públicas como contrapartida à liberação de operações de empréstimos e assistência técnica oferecida por eles. Documento  obtido pela CNN Brasil, da Secretaria de Assuntos Econômicos Internacionais – SAIN, do Ministério da Economia, revela, por exemplo, negociação com a União em torno de 180 milhões de dólares para o financiamento de “Programa Federativo para Segurança Pública Inteligente”, com USD 45 mi desse valor destinado à “qualificação da gestão e da governança da segurança pública”; outros USD 45 mi para “implementação de programas de prevenção social e situacional da violência”; USD 72 milhões para a “modernização das organizações policiais”; e, por fim, USD 18 milhões para a “qualificação do sistema prisional e dos programas de ressocialização”.

O problema é que, em geral, tais projetos não mudam culturas organizacionais gestadas antes da Constituição de 1988, não obstante eles seguirem recomendações e boas práticas internacionais, conforme indica estudo elaborado pelo FBSP a pedido do Governo do Ceará quando da construção do Programa Ceará Pacífico (ver aqui), em 2018. Em não poucos casos, diante da possibilidade de novos recursos oferecida pelos Organismos Internacionais, gestores estaduais e federais agregam projetos de seus interesses já em curso à proposta conceitual formulada pelos bancos, sem necessariamente os componentes de cada projeto guardarem relação entre si e a unidade contratante ter mandato para implementar todas as atividades previstas. Essa é a forma burocrática que as Unidades da Federação, que com exceção de São Paulo, dependem de recursos federais de transferências voluntárias para fazerem investimentos em equipamentos e processos na segurança, aceitam interferências externas sem, contudo, mudar suas práticas. Ao fim e ao cabo, as operações de crédito internacional repetem as tentativas dos diversos planos nacionais de segurança pública durante os Governos Collor, FHC, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro de vincular a liberação de recursos condicionando-os à aceitação de ações e programas específicos, mas possuem baixa capacidade de incidência e mudança.

Não há garantia de que os programas propostos terão a mesma eficácia e efetividade daqueles que os inspiraram no mundo mas, em contexto de restrição orçamentária, os recursos dos organismos internacionais mitigam a crise fiscal e a não observância, por parte do Governo Federal, das novas regras do SUSP (Sistema Único de Segurança Pública), que torna obrigatório o repasse de recursos das loterias para as Unidades da Federação. Importante destacar que o Governo Bolsonaro está tentando, na prática, bloquear o repasse de recursos de novas fontes de receita oriundas das loterias para oferecer às Unidades da Federação o aval à contratação de empréstimos internacionais, o que chama ainda mais atenção pela narrativa “antiglobalista” que o atual governo assume para si. Esse é um movimento temerário para as finanças públicas estaduais, pois troca recursos financeiros livres de encargos estimados, quando da promulgação do SUSP, em R$ 800 milhões em 2018; R$ 1,7 bilhão em 2019; e R$ 4,3 bilhões em 2022 por empréstimos que precisarão ser pagos. A contratação de operações de empréstimos internacionais seria um fator de maior transparência, qualidade do gasto e governança se viesse acompanhada pela execução dos recursos já disponíveis e mais baratos.

O mesmo governo que negocia, por intermédio do Ministério da Economia, a contratação de empréstimos internacionais para a segurança pública nos estados e DF é o Governo que, no Ministério da Justiça e Segurança Pública, deixa de executar a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social prevista no SUSP, em especial, como já analisado na edição 41 do Fonte Segura, a estruturação dos programas de Valorização Profissional dos Policiais e do SINAPED, sistema de avaliação e monitoramento que tem como função padronizar métricas e indicadores comuns a todos os integrantes do Sistema Único de Segurança Pública. O fato é que, apesar das reformas recentes com a criação do Sistema Único de Segurança Pública (2018) e a alteração da lei do Fundo Nacional de Segurança Pública com previsão dos recursos das loterias, gastos e ações no setor por parte do governo federal continuam inexpressivas (ver balanço da atuação de Sergio Moro à frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública aqui).

Como pano de fundo, há dissonância entre a legislação infraconstitucional e os comandos da Carta Magna, sendo que praticamente toda a legislação que ainda hoje regula a segurança é anterior à Constituição de 1988 e os legisladores não regulamentaram o significado prático do ser e fazer polícia no contexto democrático; no contexto da ordem social inaugurada em 1988. As Polícias Judiciárias (Civil, Federal, Militar para crimes militares) se baseiam no instituto de inquérito policial, criado em 1871, e nos Códigos Penal e Processual Penal (Civil e Militar), da primeira metade do Século XX. As prisões são geridas com base em legislação de 1994 e as Polícias Militares ainda funcionam de acordo com os pressupostos do decreto Lei 317, de 13 de março de 1967, mantidos quase que intactos pelo R200 (Decreto  88.777, de 1983), que ainda está em vigor e que fala de “segurança interna” e não de “segurança pública”– legislação que, a priori, vai contra a Constituição na medida em que o seu Artigo 144  diz que as PM são gerenciadas pelos Governadores, enquanto o Artigo 3º. Do Decreto 88.777/83 diz que elas são “coordenadas” pelo Exército.

O resultado prático desta situação é que, ao ter dois chefes, as polícias militares foram se tornando excessivamente autônomas e hoje decidem quase sem questionamentos quem obedecer e quais seus padrões operacionais e o escopo de suas ações. E, considerando que o padrão de policiamento valorizado social e politicamente, independentemente de a polícia ser Civil ou Militar, é aquele que aceita a ideia de inimigo interno e que “bandido bom é bandido morto”, não é de se surpreender que tenhamos tantas mortes decorrentes de intervenção policiais. A investigação e o trabalho de inteligência cedem espaço para o enfrentamento bélico na percepção de como o controle do crime deve ser feito no Brasil, estimulando que as PM, que são as fiadoras da ordem pública, adotem padrões de uso da força que seriam inaceitáveis em democracias consolidadas no mundo.

A questão não é apenas a do abuso individual do policial mas de valorização do combate ao inimigo, mesmo que outros padrões de policiamento pudessem gerar melhores resultados na redução da violência e controle do crime. Esse fato justifica que tenhamos cerca de 6 mil mortes decorrentes de intervenção policial por ano no Brasil, número que, em termos comparativos, é 6 (seis) vezes superior ao dos Estados Unidos. Além disso, o clima de enfrentamento constante e as péssimas condições de trabalho dos policiais brasileiros estão entre os fatores que fizeram com que o número de policiais que cometeram suicídio no Brasil em 2018 (104 casos) fosse maior do que a quantidade que morreu em decorrência de confronto em serviço nas ruas (87).

Mas a responsabilidade não é exclusiva das Polícias Militares. Quando vemos os discursos políticos, por exemplo, de Jair Bolsonaro, Wilson Witzel e Joao Doria, quando de suas eleições, percebemos o estímulo à estratégia “mirar na cabecinha” e de ampliação de unidades especiais de polícia (que a mídia trata incorretamente como “tropas de elite”, o que faz com que os policiais que não fazem parte desta unidade pensem que elas são a referência do ser policial e adotem os mesmos padrões e subculturas) que funcionem no padrão “Rota” e que tirou policiais da Força Tática e do Patrulhamento Territorial por imposição do governador.  Não surpreende o crescimento dos casos de violência policial quando os governantes, por razões eleitorais, defendem polícias mais duras contra o crime.

O Ministério Público, por sua vez, que tem a prerrogativa constitucional do controle externo da atividades policial, tem enorme dificuldade em fiscalizar as Polícias para além do controle concentrado de cada inquérito policial instaurado e, em geral, foca na legalidade da ação individual de cada policial. Não há controle em matéria de tutela coletiva de padrões e procedimentos institucionais das polícias, mesmo após a Resolução CNMP nº 201/2019, que alterou as Resoluções nº 129/2015 e nº 181/2017, ambas do CNMP, com o objetivo de adequá-las às disposições do Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente à decisão do caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Enquanto isso, as Polícias Civis, acabam dependentes do volume de casos de flagrantes enviado pelas Polícias Militares e têm dificuldades para investigar e esclarecer a autoria de crimes, com especial ênfase a de homicídios de autoria desconhecida que demandam a observância de práticas comuns às polícias (isolamento do local do crime, colheita de evidências, custódia de provas técnicas, entre outros). Sem parâmetros comuns ou controle de tutela coletiva por parte do MP, tais crimes têm suas investigações afetadas pela baixa articulação interinstitucional na ponta da linha e pela falta de um projeto institucional para as polícias civis, que como consequência vão sendo sucateadas e relegadas pelos governantes. E o mais grave, o movimento da criminalidade fica, em muitos estados, mais suscetível à cena do crime organizado do que às políticas públicas de segurança. Governos costumam reivindicar méritos pela redução de tais crimes (quem não se lembra dos diversos tuítes de Sergio Moro vangloriando-se da queda dos crimes em 2019 sem, no entanto, apontar o que foi feito e/ou o seu silêncio após a retomada do crescimento dos índices), mas, quando eles sobem, como nos últimos 6 meses (Gráfico 1), as polícias são cobradas sem, no entanto, avançarmos na mitigação dos dilemas de governança impostos pelo pacto federativo e republicano vigente no país.

 

Elaboração do autor

Ao mesmo tempo, diante das pressões e das fragilidades institucionais, uma das expressões mais cruéis e invisibilizadas do racismo brasileiro se manifesta nos números da violência: 75% das vítimas da violenta letal no Brasil são negras. Jovens negros morrem mais do que jovens brancos; policiais negros, embora constituam 37% do efetivo das polícias são 51,7% dos policiais assassinados; mulheres negras morrem mais assassinadas e sofrem mais assédio do que as brancas. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Da mesma forma, faz 3 anos que estamos observando o crescimento dos crimes sexuais, agressões e feminicídios. E, com a Pandemia de Covid-19, há um agravamento da violência doméstica e crescimento ainda maior dos feminicídios. E esse crescimento não se reflete nos registros de ocorrências nas delegacias de Polícia, já que o isolamento social dificulta o deslocamento das vítimas, e coloca a necessidade de criação de novos canais de denúncia e acolhimento para mulheres em situação de violência.

E, para tornar o quadro ainda mais complexo, não há um índice nacional de esclarecimentos de homicídios que balize o planejamento integrado de ações. Levantamento realizado em 2018 pelo Monitor da Violência, parceria entre o Portal G1 com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos da Violência indicou que apenas 24,7% dos homicídios, em média, são esclarecidos e encaminhados para o Ministério Público no país, com Unidades da Federação apresentando percentuais ainda mais baixos e indicativos da completa falência da ideia de responsabilização de autores de crimes e violências, conforme gráfico 1. As instituições de segurança pública ficam pressionadas pelo congestionamento de casos na etapa inicial do trabalho policial, quase sempre fruto dos flagrantes em torno de crimes relacionados às drogas, uma vez que a legislação sobre o assunto (lei 11.343/2006), acabou por agravar o quadro de inequidades e falta de métricas que governa a segurança brasileira.

Elaboração do autor

E por falar em lei de drogas, um dos seus mais visíveis efeitos é a explosão da população prisional do país, que em 2019, segundo do DEPEN/MJSP, contava com cerca de 760 mil presos (em mais uma evidência da baixa coordenação e governança da área aqui também não há consenso entre os Poderes Executivo e Judiciário e o Ministério Público, com cada um apresentando um número diferente de presos). Cerca de 1/3 desses presos encontram-se em situação provisória, que é quando ainda não foram julgados ou quando aguardam a decisão sobre eventuais recursos interpostos.  Na impossibilidade de garantir condições mínimas de subsistência aos presos, o Estado, como um efeito colateral perverso da política criminal e penitenciária, acabou por fortalecer as mais de 70 facções de base prisional existentes no país, sendo as mais conhecidas o PCC e o Comando Vermelho, que entraram em guerra em 2016 e fizeram disparar as taxas de mortes violentas em vários estados. Este conflito assume contornos diferentes em cada UF, a depender das parcerias com facções locais, mas provoca um quadro de insegurança e incerteza muito grande.

Mais recentemente, as transferências de lideranças paulistas do PCC realizadas em 2019 e prisão de Fuminho, um dos maiores atacadistas de drogas da América do Sul, em 2020, pela Polícia Federal, parecem indicar uma mudança geracional dentro do PCC e que pode alterar a equação de forças entre as facções de base prisional. Facções estas que tiveram seus negócios afetados pela pandemia e precisaram encontrar novas fontes de financiamento e “capital de giro” para manterem seus pontos de venda de drogas (o tráfico internacional, em um exemplo, foi afetado pela diminuição de voos e pela redução da chegada e saída de mercadorias nos principais portos do país, chegando a faltar maconha para atender algumas grandes cidades como São Paulo).

No plano conjuntural, o sistema prisional brasileiro também tem sido pressionado pela pandemia de Covid-19. Dados do Prision Insider e do Global Prison Trends 2020 revelam que o Brasil encarcera cerca de 7% dos presos do mundo, enquanto registra aproximadamente 5% dos casos de Covid-19 e 4,2% das mortes de presos do planeta. Estes números fazem com que o país tenha o segundo sistema prisional mais afetado pela Covid-19 entre todos os países analisados. O Brasil só perde para os EUA, que respondem por 20,9% da população prisional mundial porém registram 74,4% dos casos de Covid-19 entre presos e 44,3% das mortes de presos do mundo.

Mas o que em tese seria uma notícia positiva pelo fato do país ter, proporcionalmente, taxas de contágio e mortalidade por Covid-19 dentro das prisões inferiores em relação à sua proporção de presos do mundo, tem-se perdido energias de prevenção e controle no debate político, aumentando riscos de rebeliões e reforçando o diagnóstico da baixa integração e articulação entre os diferentes atores e instituições cujas ações impactam diretamente a segurança pública. Ao longo da pandemia, o Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN tentou implantar um modelo que, no começo da década de 2000, no Espírito Santo, ficou conhecido como “prisões de lata” e cujos efeitos deletérios são muito maiores do que os benefícios anunciados de separação e isolamento de presos. Da mesma forma, a sensação que o Judiciário estava abrindo as celas das prisões e libertando criminosos perigosos com a aprovação da Recomendação nº 62/2020, do CNJ. Porém, dados compilados pelo próprio CNJ indicaram que a taxa média nacional estimada de pessoas que voltaram a ser presas após deixarem os presídios em razão da pandemia do novo coronavírus e cometerem novos delitos foi inferior a 2,5%.

Em paralelo, o crescimento do poder das Milícias, sobretudo no Rio de Janeiro e no Pará, preocupa pelo fato de elas sinalizarem para a ideia de controle político dos territórios e das populações que neles residem ao mesmo tempo de serem compostas por muitos integrantes e ex-integrantes de forças policiais. Sem controle, as milícias representam um novo e perigoso patamar de violência política e que pouco tem merecido a atenção de autoridades do Poder Executivo e das Polícias. O temor é que, com o noticiário político expondo as ligações dos ex-policiais Fabricio Queiroz e Adriano da Nóbrega, morto pela Polícia da Bahia em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas para a população e acusado de ser o líder de uma das principais milícias do Rio de Janeiro, o “Escritório do Crime”, com a família do presidente Jair Bolsonaro, novas denúncias possam desestabilizar o cenário político-institucional do país.

E por falar em política, outro fator que pressiona os números da segurança pública é a excessiva politização das forças policiais do país. Ao contrário dos integrantes do Ministério Público ou do Poder Judiciário que, caso queiram se candidatar, precisam abrir mão de suas carreiras nestas instituições, a legislação brasileira tem brechas que fizeram com que, entre 2010 e 2018, 7.168 PM disputassem eleições em todo o Brasil sem a necessidade de saírem de suas carreiras – um em cada 58 policiais nas ruas tem ambições políticas —levando em conta que, ao final de 2018, as PMs tinham um efetivo de 417.451 homens e mulheres na ativa). Só se eleitos é que eles precisam se afastar. Do contrário, voltam para as corporações. O problema é que uma vez na política, dificilmente uma pessoa volta disposta a acatar ordens sem maiores questionamentos. Polícia e Política são duas esferas fundamentais da vida pública de uma nação democrática, mas elas não podem ser confundidas ou uma se apropriar da outra para a consecução de seus objetivos.

Um exemplo que demonstra o grau de politização das polícias e os riscos postos por ele é o motim da Polícia Militar do Ceará, em fevereiro, quando em meio a uma negociação salarial, uma entidade liderada por um apoiador do governo Bolsonaro colocou-se contra o acordo acertado entre as demais associações e o governo estadual, do PT, e fez com que, naquele período, cenas de terror e violência tomassem conta daquele estado. E, naquele mês, o Ceará registrou o recorde de 456 homicídios, que ajudou a reverter a tendência de queda nos índices deste crime que estavam sendo observadas entre 2018 e 2019. O levante só terminou após o envio, relutante, de tropas federais pelo Governo Federal e a aprovação, pela Assembleia Legislativa do Ceará, de projeto de lei do governador que proíbe anistias a policiais amotinados.

Demandas legítimas por melhores condições de vida, trabalho e salário dos policiais foram sendo apropriadas por projetos políticos partidários. Porém, em uma evidência de que tais processos sociais não são unidirecionais ou absolutos, o Governo Bolsonaro, que conta com a adesão de parcelas significativas de integrantes das polícias, tem avançado muito pouco na implementação de medidas concretas que favoreçam o todo das corporações policiais e tem preferido evitar concorrências internas ao bolsonarismo, como no caso do desconvite ao Coronel PM Araújo Gomes, que presidia o Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, para assumir a SENASP. A Secretaria Nacional de Segurança Pública foi dividida e o Cel Araújo Gomes foi preterido em favor de um outro oficial PM mais ligado ao núcleo de confiança do presidente e com muito menos exposição e ascendência juntos às Polícias Militares estaduais. Isso permite ao Governo manter o controle da narrativa de apoio aos policiais e foi, na minha avaliação, uma forma de evitar o fortalecimento de lideranças que não do presidente, como os ex-ministros Sergio Mouro e Luiz Henrique Mandetta.