Violência policial e política
Em 1997, caso da Favela Naval serviu como catalisador de mudanças na PM paulista. Há hoje espaço para mudança de atitude da corporação?
Por Samira Bueno*, publicado originalmente no Boletim Semanal de Análises Fonte Segura, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (fontesegura.org.br)
Casos recentes de imagens de abordagens policiais reacenderam o debate sobre violência policial e uso desproporcional da força por agentes do Estado. Em Barueri, um cidadão sentado na calçada foi violentamente abordado por quatro policiais, mesmo sem demonstrar nenhum tipo de resistência. Na zona norte de São Paulo, policiais foram flagrados espancando um jovem, que seria ainda arrastado por uma escadaria e levaria socos na cara de um dos agentes. As ocorrências, amplamente noticiadas pela imprensa e compartilhadas nas redes sociais, geraram uma série de comparações entre esses episódios e o caso conhecido como Favela Naval, responsável por reformas na Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Era março de 1997 quando o Jornal Nacional exibiu as imagens de policiais torturando e extorquindo nove moradores da região da Favela Naval, em Diadema, que terminou com a execução a tiros do mecânico Mário José Josino pelo policial militar conhecido como Rambo. As cenas foram recebidas com grande consternação pela sociedade, causando comoção muito maior do que os 111 mortos do Carandiru, cinco anos antes. Após a exibição das imagens, que ficaram conhecidas mundialmente, o governador Mário Covas fez um pedido de desculpas à sociedade e solicitou ao então secretário da Segurança José Afonso da Silva, reconhecido jurista, uma proposta de Emenda Constitucional que transferia para a polícia civil a tarefa de policiamento ostensivo.
O episódio em Diadema promoveu uma série de mudanças internas na corporação, sob pena de ainda maior enfraquecimento político. O governador Mario Covas substituiu à época o comandante geral, e o que se seguiu foram profundas transformações nos currículos de formação da tropa, que inauguraram o tripé que incluía a gestão pela qualidade, direitos humanos e policiamento comunitário como bases de sustentação da organização.
Ainda que incrementais, estas mudanças foram responsáveis por uma série de inovações e avanços nas políticas de segurança pública do Estado de São Paulo, que coincidem em sua maioria com a atuação de Mário Covas como governador. Este ponto é importante de ser destacado, pois reside aí um elemento central para compreensão do que ocorreu em 1997, e do porquê o mesmo não deverá acontecer agora em 2020.
O primeiro ponto a ser destacado diz respeito ao empenho e liderança pessoal de Mário Covas na agenda de controle da atividade policial. Covas foi eleito com uma plataforma que prometia reduzir os níveis de letalidade policial, criou a Ouvidoria de Polícia em seu primeiro dia de mandato, determinou a publicação de estatísticas periodicamente e concebeu um programa de afastamento de policiais envolvidos em ocorrências de alto risco. O tema do controle do uso da força policial não era contingente e tampouco decorria de oportunismo político, mas era estrutural de seu plano de governo. Bem diferente da postura do atual governador João Doria, que foi eleito na esteira dos ideais bolsonaristas, e em abril do ano passado parabenizava policiais envolvidos em uma ocorrência com resultado morte por “colocarem no cemitério mais dez bandidos”.
O segundo ponto a ser destacado diz respeito à percepção da população em relação à violência policial. Se em 1997 boa parte da classe média não tinha ideia de como a Polícia Militar podia ser truculenta na periferia, em 2020 essa desigualdade no padrão de policiamento da organização está naturalizada, tendo sido reconhecida pelo ex-comandante da Rota em entrevista ao portal de notícias UOL, quando apontou que a abordagem realizada nos Jardins tem que ser diferente da abordagem na periferia. Em uma sociedade assentada na desigualdade, a afirmação não causa espanto ou indignação e passou a ser naturalizada.
Por fim, o terceiro ponto a ser levantado e que ajuda a compreender por que nenhuma mudança significativa deve ocorrer no curto prazo com a PMESP diz respeito ao reconhecimento por parte da própria corporação da necessidade de promover mudanças. Seja pela pressão da opinião pública ou do governador, o fato é que em 1997 a Polícia Militar do Estado de São Paulo entendeu que precisava mudar, reconheceu que os casos de violência policial não eram episódios isolados e se dedicou a expurgar os que defendiam o confronto como política de Estado.
Instituições autônomas e militarizadas como as Polícias Militares são muito refratárias ao controle externo e só mudam efetivamente quando o controle interno atua. Por mais pressões externas que existam, é necessário o reconhecimento da necessidade de mudança para que estes processos sejam desencadeados. A declaração recente do governador João Doria de que implementará um amplo programa de “retreinamento” da corporação e o anúncio de instalação de 200 câmeras corporais efetivam a mudança de discurso do político. E ainda que propostas do gênero sejam louváveis, parecem ignorar que estamos diante de um padrão de uso da força que tem relação com uma cultura organizacional que entende a força letal como um desfecho provável do policiamento, e não um resultado a ser evitado ao máximo.
A corporação, por sua vez, continua a insistir no discurso das “maçãs podres” para justificar as muitas cenas de violência policial recentemente divulgadas, ainda que os “desvios individuais de conduta” ocorram em diferentes regiões, sob diferentes comandos, em diferentes circunstâncias e em meio a uma pandemia que fez despencar os crimes patrimoniais e recolheu mais da metade da população às próprias casas. A história demonstra que, enquanto a negação seguir como bússola da corporação, os episódios de truculência e brutalidade seguirão recorrentes.