A Polícia Federal, o SISBIN e a Democracia
Em meio ao agravamento das tensões entre Poderes e às tentativas de instrumentalização da PF, o Faces da Violência republica texto de autoria de Marco Cepik (UFRGS), publicado originalmente no fontesegura.org.br, que discute o papel da Polícia Federal no Sistema Brasileiro de Inteligência e que ajuda a compreender os movimentos políticos atuais.
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Bolsonaro tentou indicar o atual diretor da ABIN, delegado Alexandre Ramagem, para dirigir a Polícia Federal. Barrado pelo juiz Alexandre Moraes no STF, no dia 04/05/2020 o presidente empossou o delegado Rolando Alexandre de Souza, até então secretário de planejamento na ABIN, como diretor da PF. Além da controvérsia imediata sobre a existência de desvio de finalidade por causa da proximidade de Ramagem com a família Bolsonaro, o episódio nos obriga a refletir sobre as diferenças entre as funções investigativas e de inteligência na PF.
Primeiro, houve a invocação imprópria pelo presidente do decreto 9.881/2019 que alterou o funcionamento do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), como justificativa para querer pedir informações diretamente para a PF. Ora, a principal alteração trazida por aquele decreto foi a instituição de um Conselho Consultivo do SISBIN, como órgão de assessoramento do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI/PR). De fato, a Polícia Federal participa daquele Conselho. Mas o faz por meio da Diretoria de Inteligência Policial (DIP).
As demais diretorias da PF têm atribuições distintas e específicas (técnico-científica, administrativa e logística, tecnologia da informação, gestão de pessoal, corregedoria e, principalmente, investigação e combate ao crime organizado). No caso, as funções de polícia judiciária da União e a atividade investigativa da PF são regulamentadas pelo Código de Processo Penal e pela Lei 10.446/2002, certamente não pela Lei 9.883/1999 que instituiu o SISBIN. As funções investigativas e de inteligência da PF, em tese, não se confundem. A inteligência tem função de assessoramento para decisões estratégicas. Enquanto o foco da investigação é o crime e os criminosos, o foco da inteligência é (ou deveria ser) a criminalidade.
Um segundo aspecto decorre justamente da precária regulamentação das operações de inteligência no Brasil, algo particularmente grave na área de segurança pública. Em 2016, foi divulgada uma Política Nacional de Inteligência (PNI) por meio do Decreto 8.793. No ano seguinte, um Decreto sem número de 15 de dezembro de 2017 oficializou uma Estratégia Nacional de Inteligência (ENINT). Embora a criminalidade organizada, a corrupção e as ações contrárias ao Estado Democrático de Direito tenham sido incluídas no rol de ameaças com potencial para colocar em perigo a integridade da sociedade e a segurança nacional, nenhum dos dois documentos avança na especificação de missões prioritárias ou próprias de cada órgão do SISBIN.
No caso da ENINT, um dos objetivos estratégicos fala apenas em “criar protocolos específicos para atuação integrada em relação às seguintes ameaças: corrupção, crime organizado, ilícitos transnacionais e terrorismo”. O problema é que o número de órgãos federais que participam do SISBIN aumentou de 22 em 2002 para 42 em 2020. No caso do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, além da DIP participam do Conselho do SISBIN a Diretoria de Inteligencia da Secretaria de Operações Integradas (SEOPI), a Diretoria de Inteligência do DEPEN, a SENASP, o DRCI, a PRF e a CONPORTOS. Isso para não falar do Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP), criado pelo Decreto 3695/2000 e que envolve principalmente as forças estaduais.
A Lei 13675/2018 que criou o SUSP fala em inteligência de segurança pública e defesa social, mas também em inteligência policial. Seja como for, nenhum dos órgãos estaduais ou federais com atuação nessas áreas tem regulamentadas as operações de inteligência no território nacional ou no exterior. Por razões tecnológicas, organizacionais e culturais, tanto na esfera militar quanto na policial há uma tendência para uso tático e não estratégico dos conhecimentos produzidos pela inteligência. E, como aprendemos na crise institucional em torno da Operação Satiagraha (2011), há risco moral, jurídico e político quando as duas atividades se confundem.
Portanto, o terceiro aspecto diz respeito ao controle externo das atividades de inteligência dos órgãos que compõem o SISBIN. Prevista em lei desde 1999, a Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional (CCAI) funcionou precariamente desde então e só teve seu regimento interno aprovado em 2013 (Resolução 02-CN). As atribuições da CCAI abrangem todos os órgãos do SISBIN, incluindo “todas as ações referentes à supervisão, verificação e inspeção das atividades de pessoas, órgãos e entidades relacionados à inteligência e contrainteligência no Brasil”. Na prática, porém, não há evidências de que consiga ser efetiva. Mesmo no caso da ABIN, uma agência civil e que alcançou um alto nível de profissionalização e transparência (compatível com o segredo governamental), a assertividade da CCAI é baixa.
A ABIN conta com um Assessor de Controle Interno (ACI), que tem a atribuição de acompanhar o atendimento das recomendações e determinações da Secretaria de Controle Interno da Presidência de República (CISET/PR) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Mas a função da CCAI vai além da fiscalização sobre a conformidade legal, constituindo na prática o único locus possível de construção de legitimidade e de integração dos interesses burocráticos diversos em uma visão cidadã das prioridades estratégicas e governança democrática. A inteligência militar, policial e financeira atuam hoje sem nenhum tipo de controle congressual. A CCAI atualmente é presidida pelo senador Nelsinho Trad (PSD/MS), tendo com vice-presidente justamente o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL/SP).
Como diz o ditado chinês, do outro lado da moeda existe outro lado. A fragilidade dos órgãos de controle externo da atividade de inteligência pode levar a dois tipos de abuso. Da parte de governantes com interesses e agendas imediatos. Mas também das próprias corporações, protegidas pela complexidade técnica e pelo segredo legal em suas atividades. Nesse sentido, a autonomia funcional da PF para cumprir sua dupla função na manutenção da segurança pública e no provimento de justiça criminal não deveria ser de modo algum confundida com “independência” para se evadir de prestar contas e justificar para o público suas prioridades e as consequências de suas ações. A democracia depende de sermos capazes de evitar ambos os tipos de abuso.