666 anos que separam a Peste e a pandemia de Covid-19
O mundo assiste atônito a erosão de antigas certezas e ao alvorecer de novos padrões sociais, não necessariamente disruptivos, porém capazes de provocar inquietudes e nos fazer refletir sobre nossas crenças e a nossa vida cotidiana.
No plano simbólico, o primeiro caso conhecido do novo coronavírus foi reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como tendo ocorrido em dezembro de 2019, na China. E, para aqueles que gostam de coincidências históricas, em 2019 completaram-se 666 anos do ano final do auge da Peste Negra, em 1353, que matou milhões de pessoas no planeta.
E, na tradição Judaico-Cristão, ‘666’ é o número da Besta, referência mais famosa do Apocalipse, e é citado no livro das revelações, de João, escrito no Século I. O trecho que o cita diz: “Quem tiver discernimento, calcule o número da besta, pois é número de homem, e seu número é 666”.
Ao fazer tal descrição, contudo, João estaria se valendo da antiga tradição de ocultar nomes de pessoas por intermédio de números para simbolizar não apenas a profecia do final dos tempos, mas também ao Imperador Nero, odiado pela perseguição dos primeiros cristãos. De acordo com reportagem da BBC, para alguns pesquisadores, se você escrever o nome de Nero no alfabeto hebraico, a equação somaria, exatamente, 666.
Nero foi criado em um ambiente de intrigas e ameaças e assumiu como imperador de Roma em outubro de 54, governando até sua morte, no ano de 68. Ele foi considerado insano e atroz, sem limites para sua vontade de poder e disposição para, se necessário, defender o uso da violência e do medo. Diante da pandemia do Covid-19 e da insólita abordagem que tem tido no Brasil, a revista The Economist não teve dúvidas e comparou o presidente Jair Bolsonaro ao imperador Nero.
No plano da vida cotidiana, o simbolismo ao qual a The Economist faz referência não se dá apenas pelo negacionismo científico do presidente brasileiro. Ao construir narrativas alternativas, o Brasil insiste no apagamento da história e esquece que, quando falamos sobre segurança pública, entre outros temas, o país não está ‘deitado em berço esplêndido’, mas em um leito de silêncio, sangue e violência.
E aqui que temos que ter cautela ao analisar os números oficiais sobre crime e violência produzidos durante a pandemia. Ao mesmo tempo eles não podem ser desconsiderados e são indicativos da capacidade do Poder Público em dar respostas político-institucionais diante da crise.
Pelas informações disponíveis, há um cenário nacional e subnacional que está se configurando e que nos mostra acentuada redução de furtos e roubos comuns diante da redução da circulação de pessoas; aumento dos homicídios; fortalecimento de conflitos entre facções; e reaparecimento de roubos a carro-forte (talvez motivados pela redução da oferta e da demanda por drogas provocada pelo isolamento social e pelo fechamento das fronteiras).
Entretanto, é na forma como o sistema de segurança pública lida com a violência contra a mulher; com os riscos de contaminação nos presídios; e com a proteção dos policiais frente na linha de frente da interação com a população que vemos que, passada a fase aguda da pandemia, a tendência é que o jogo de soma zero jogado faz décadas na área seja retomado, sem grandes expectativas de mudanças ou inovações.
Isso porque, na dificuldade adicional imposta pelo isolamento social de captar informações fidedignas sobre violência contra a mulher, muitas instituições se isentam de responsabilidades e/ou adotam, quando muito, procedimentos cosméticos que não atingem o cerne do problema. Por certo há boa vontade de alguns gestores e autoridades, mas falta capacidade de implementação de políticas públicas.
Da mesma forma, pressupostos ideológicos se sobrepõem ao planejamento racional e nota-se a repetição da aliança político-ideológica entre Sergio Moro e Luiz Fux, construída quando da aprovação pelo Congresso da figura do “juiz de garantias”, contra a recomendação do CNJ para que o Poder Judiciário analise cada caso e, quando possível, libere presos não violentos como estratégia de mitigação de riscos de contaminação por Covid-19 e de prevenção de convulsão no sistema prisional.
E, por fim, a dificuldade de coordenação e de logística para o provimento de equipamentos de proteção individual para os policiais e o fato de que, quando disponíveis, há policiais que resistem a utilizá-los em abordagens e/ou atendimentos feito à população revelam o quão complexo é engajar as polícias em torno de temas da prevenção e que não sejam aqueles associados ao combate do crime organizado. A morte de policiais pelo contágio de coronavírus não é mais um risco; é realidade.
No limite, a segurança pública brasileira flerta com falsos profetas e parece eternamente imersa no Purgatório, de Dante Alighieri, quando ele afirma, no canto XXVIII, que “Già m’avean transportato i lenti passi dentro alla selva antica tanto, ch’io non poteva rivedere ond’io mi ‘ntrassi;…“[Com demorado andar eu tanto caminhara na selva antiga, que não via mais o lugar por onde penetrara].
Mas nunca é demais reiterar que, acima de tudo e todos, a vida prevalecerá. Os homens e mulheres de boa vontade vencerão as bestas do Apocalipse. Boa Páscoa!
Erramos: o texto foi alterado
Após questionamentos de leitores e para dar mais precisão ao argumento, a frase: "em 2019 completaram-se 666 anos do auge da Peste Negra, em 1353, que matou milhões de pessoas no planeta" foi substituída por "em 2019 completaram-se 666 anos do ano final do auge da Peste Negra, em 1353, que matou milhões de pessoas no planeta"