Pedro Malasartes e a espiral do medo que nos governa
A crise do Covid-19 escancarou que a energia vital da gestão de Jair Bolsonaro depende do medo e do pânico para não se esvair e reter Poder. O medo é potencializado por teorias da conspiração e por exércitos de zumbis virtuais que parecem, para ficar na analogia médica, acometidos de um surto de “Catarata”, que é a doença que compromete o cristalino dos olhos e torna a visão opaca e embaçada.
Manejando habilmente fluxos de informação e narrativas político-ideológicas a seu favor, Jair Bolsonaro soube até aqui explorar muito bem o ditado popular em “terra de cego quem tem um olho é Rei”. Muitos brasileiros acreditam em seu discurso pretensamente redentor e antisistêmico, independentemente das evidências e das ações concretas. Não importam dados, evidências ou conhecimento acadêmico e científico. O foco é a destruição narcísica de tudo o que não é espelho ou que não esteja subjugado pelos interesses de seu clã.
Sua gestão é a mais completa tradução do lendário Pedro Malasartes, personagem tradicional da cultura portuguesa. Nos contos populares, este personagem é descrito como exemplo de “burlão invencível, astucioso, cínico, inesgotável de expedientes e de enganos, sem escrúpulos e sem remorsos”. Visto desta perspectiva, o atual ocupante do cargo de Presidente da República nada mais seria do que uma caricatura grosseira das mazelas históricas, morais e políticas do país.
Mas reduzir todas essas mazelas à figura do atual presidente não é correto. Não podemos esquecer de significativas parcelas da sociedade que pegam carona nos arautos da insensatez (talvez Abraham Weintraub e Ernesto Araújo sejam os dois mais proeminentes, mas também Paulo Guedes e Sergio Moro, que aceitam fazer parte de um governo disruptivo) e dão sustentação a um projeto de poder aético e que pouco se preocupa com a vida.
E aqui um ponto central. Mesmo após incontáveis declarações e ameaças veladas à quebra da institucionalidade, o Governo Bolsonaro ainda conta com cerca de 30% de apoio entre a população. E isso pode ser constatado por três pesquisas de opinião divulgadas nos últimos dias com dados que avaliam a condução da “coronacrise” pela gestão Bolsonaro.
A primeira delas, encomendada pela XP Investimentos ao IPESPE, mostra que, no período de 16 a 18 de março, 30% dos investidores do mercado ouvidos pela corretora avaliaram a gestão como ótima e/ou boa (em fevereiro eram 34%). Já o Datafolha, que foi a campo entre 18 e 20 de março, constatou que a gestão da crise pela gestão Bolsonaro era aprovada por 35% da população adulta com mais de 16 anos de idade. Por fim, a terceira pesquisa, do Instituto Ideia Big Data, feita entre os dias 24 e 25 de março, mostra que 28% aprovam a gestão Bolsonaro.
Diante de tais dados, é possível supor que há milhões de brasileiros que estão dispostos a aceitar a violência como linguagem e a insegurança como regra, já que o Estado de Direito pressupõe limites que, o tempo todo, estão sendo ultrapassados. E, se é possível explicar tal fenômeno, o pânico gerado pelo medo e pela incerteza não pode ser desconsiderado.
Medo da violência; do desemprego; de uma depressão econômica; de ser vítima do coronavírus. E, entre as múltiplas faces da violência, vemos população e profissionais de linha de frente (médicos, enfermeiros, policiais, bombeiros, entre outros) abandonados à própria sorte e à tradicional e perversa letargia que caracteriza a burocracia pública do país. Tudo temperado pelo descaso para com a vida e com a garantia dos direitos civis da população.
Tanto é que, se for da conveniência política, muitos irão tecer duras críticas à medidas que, por exemplo, tentem mitigar os riscos em presídios e nada além de “preocupações” retóricas com o aumento da violência contra a mulher será implementado. Falta-nos coordenação, articulação e, em especial, falta-nos vontade política e institucional para enfrentar o aprofundamento das agudas desigualdades estruturais que caracterizam a sociedade brasileira.
Disso, é pouco provável que críticas em relação à incompostura e/ou falta de liturgia do presidente diante dos riscos tenham ressonância. Pela análise dos dados das pesquisas citadas, isso só deve mudar se ao menos 7% dos atuais apoiadores mudarem de opinião e, com isso, isolar o discurso negacionista de Jair Bolsonaro a um importante porém minoritário segmento da população.
Enquanto sua voz ecoar tão forte e for aceita por ao menos 1/3 da sociedade, mesmo que na prática seu governo recue e adote medidas baseadas nas melhores recomendações e evidências, nós estaremos sob um cenário em que não só Bolsonaro é rei, mas, pior, nós seremos o personagem do conto “A terra dos cegos”, de H. G. Wells, que detentor de visão normal, tenta convencer os demais de que ele tinha um sentido do qual eles eram destituídos; fracassa e, como resultado, a população decide arrancar-lhe os olhos para curá-lo de sua ilusão.