Além do álcool em gel: a atuação democrática das polícias é uma grande arma de muitos males

A pedido do Faces da Violência, o Major PM Alan Fernandes, da Polícia Militar do Estado de São Paulo, e doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP, resenhou o texto que foi enviado ao blog intitulado “The Politics of Policing: a Pandemic Panic” (ver aqui), de James Sheptycki, professor de Criminologia da York University, no Canadá.

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Dizer que a pandemia de Coronavírus, nossa primeira doença X, de acordo com a classificação da OMS (Organização Mundial da Saúde), provocará mudanças em nosso estilo de vida, tanto nos próximos dias, como nos próximos anos, talvez já soe como senso comum. Mas, qual será seu alcance, para além das mudanças no cotidiano que já estão em andamento? Será que essas o atual cenário irá modificar as relações da sociedade com o Estado e, ainda mais, das próprias instituições públicas? No Brasil, os dias que se seguirão, podem determinar qual será nossa fotografia quando sairmos dessa. E sairemos.

Nesse exercício, trato agora de nossas polícias e, para isso, proponho ter por base um texto elaborado por James Sheptycki, de março de 2020, chamado As Políticas de Controle Policial: um Pânico Pandêmico – no original:  The Politics of Policing: a Pandemic Panic. A partir da discussão trazida pelo trabalho, convidamos o leitor a projetar, para o caso do Brasil, como faremos a gestão da crise que se coloca à nossa porta e como estaremos depois disso.

As principais preocupações do autor ligam-se mais ao futuro pós-pandêmico. Como as forças policiais vão se colocar frente a uma reconfiguração dos controles de fronteiras, preocupação que se intensificou com a atual crise sanitária, mas já presente com o cenário da imigração dos recentes anos? Como ela vai lidar com um cenário de declínio da economia formal e aumento das atividades criminosas que decorrerão da queda das atividades produtivas desse período? Mas, principalmente, em um diálogo com este artigo, como as polícias vão lidar com o acionamento de tecnologias de restrição de mobilidade social-geográfica e com um novo panorama de ordem pública, em que a high policing, voltada à sustentação de uma ordem política, se coloca à frente da low policing, destinada à gestão de uma ordem social negociada e utilização de meios mais persuasivos que coercitivos?

Para explicar o papel das polícias nos diferentes países, Sheptycki defende que existe uma estreita ligação entre a atuação policial e a relação que se estabelecem entre sociedade civil, o Estado e o mercado na provisão de aspectos elementares da vida social, como saúde e educação. Retoma, assim, os dilemas entre os modelos liberal e socialdemocrata (aliás, nada tão atual, quando se discute o alcance da saúde pública na gestão desta crise). Para ele, mais que um tema acadêmico em si, essa relação tripartite (Estado-sociedade-mercado) e, por consequência, a atuação da polícia, determinou certos insucessos na gestão da crise sanitária nos Estados Unidos, onde a perda da legitimidade dos órgãos policiais estão associados à incapacidade de o Estado americano prover, historicamente, melhores condições sociais à sua população.

Contudo, das variações trazidas anteriormente, Sheptycki traz que as polícias possuem determinadas características que a aproximam globalmente. Elas envolvem, quaisquer que sejam os países, um conjunto de práticas institucionais de fiscalização e vigilância, que repousam na sua capacidade de rapidamente fazer uso da força, na sua tarefa de reproduzir uma ordem social, gerir riscos e insegurança política.

Por essa razão, serão, na atualidade, mais demandadas na gestão do controle de populações, testando, severamente, os limites entre uma polícia em que promova novas configurações de uma ordem pública, cada vez mais mandatária, sem abandonar o lado voltado ao atendimento dos aspectos mais triviais da vida social. Ou, resumindo as preocupações do autor, como a polícia se comportará para manter um papel democrático em um cenário que vislumbra um agravamento das desigualdades sociais geradas por uma restrição de acesso a bens econômicos e, no limite, de saúde para tratamento da Covid-19?

Mais do que respostas, a intenção do autor foi a de alertar que novas configurações de poder estão se colocando aceleradamente no mundo, que podem nos levar a uma sociedade orwelliana, em que liberdade e justiça sejam tragadas na mesma medida em que os efeitos do vírus seja controlado.

De terra brasilis, a responder às preocupações do autor, cabem alguns alertas. São preponderantes, inquestionavelmente, medidas para que sejam evitadas as infecções e mortes, mesmo que elas requeiram o emprego das polícias na restrição de circulação de pessoas. Mas também é momento de projetarmos o futuro. As forças policiais brasileiras sempre tiveram o caráter de construir suas histórias no desenrolar dos fatos, o chamado, “trocar o pneu do carro com ele andando”.

Porém, não obstante o esforço de policiais ponta-de-linha e gestores em prospectar cenários, a atual situação é imprevisível não somente pelos efeitos epidemiológicos, mas por todas as consequências que se avizinham. Talvez, até por essa razão, seja oportuno contradizer os próprios argumentos de Sheptycki e dizer que a polícia não é uma decorrência da economia política, mas que ela própria pode, nas suas estratégias e práticas, promover igualdade e justiça social, aprofundando seu caráter de atuar como um pacificador social. Talvez assim possamos, na gestão de uma mesma crise, combater mais de um vírus.

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Nota do Faces da Violência: Em um esforço de captar os aprendizados e se adiantar aos seus reflexos da Pandemia sejam tarefa dos gestores brasileiros, pedimos para que todos os policiais e pesquisadores que tiverem interesse em compartilhar análises e protocolos de atuação das forças de segurança/sanitárias que regulem o papel das forças de segurança no mundo envie seus textos, links e informações para contato@forumseguranca.org.br. Alan Fernandes está coordenando essa coleta de dados e, em breve, iremos divulgá-los com os devidos créditos de autoria e colaboração.