Entreguem as armas
Com Arthur Trindade Maranhão Costa*
O Faces da Violência tem 20 meses de vida e, em vários textos publicados neste espaço, temos alertado para a desfuncionalidade do modelo de polícia brasileiro e os riscos que a emergência do projeto populista de poder que dá sustentação à parceria Jair Bolsonaro e Sergio Moro oferece para o Estado Democrático de Direito no Brasil. Não é de hoje que os ingredientes da crise que agora mais uma vez assola o Ceará (mas que é nacional) estão fermentando um quadro grave e que deveria exigir mais atenções das autoridades e da sociedade.
Assim, não foi novidade ver a escalada de confronto e violência provocada pelo ato insano e irresponsável do Senador Cid Gomes, que em texto anterior publicado no site da Revista Piaui, chamamos de atentado e que, por isso, fomos bastante criticados por parcela que parece não querer ver que estamos diante de uma enorme encruzilhada histórica. Segundo o dicionário Houaiss, entre outras acepções, atentado, é um substantivo masculino para descrever “ato criminoso ou tentativa de sua perpetração contra pessoas, ideias etc”.
E por que criminoso? Pelo simples fato de que, naquela situação, supostos policiais encapuzados estavam invadindo prédios públicos e danificando viaturas. Além disso, ao optarem por esconder seus rostos e, ao mesmo tempo, continuarem armados não mais estavam representando o Estado ou cumprindo funções de manutenção da ordem pública. Afinal, um dos conceitos-chave da teoria de polícia sobre o mandato e a função desta fundamental instituição é o de autoridade pública constituída. E, na medida em que policiais optaram por cobrir seus rostos e descumprir ordens de comando, eles não mais estavam constituídos de autoridade pública. Eles estavam ali como cidadãos.
E, diante de uma demanda legítima por salário e condições de trabalho, a luta por direitos não pode ser feita repetindo táticas do crime organizado ou com as armas do Estado sob o risco de tornar sociedade e instituições reféns do medo e de interesses corporativos.
A única saída para esse dilema legal, seria o depósito das armas no quartéis e a reivindicação de que os policiais sejam tratados como cidadão comuns e que possam, daí sim, se manifestar com total liberdade. Esse seria um gesto muito mais poderoso e radical. Infelizmente, ao contrário, falsos profetas ficam incentivando confrontos e antagonismos.
Outro ponto que suscitou debate no nosso artigo na Piauí foi o alerta que fizemos sobre o papel das forças policiais na ruptura da ordem em vários países sul-americanos. Como previsto, um dos muitos dos gatilhos ideológicos da polarização foi acionado, ou seja, ouvimos que falar das Polícias do Chile e da Bolívia e não citar a Venezuela, o país mais anti-democrático da América do Sul, seria prova de que nossa análise seria, no mínimo, parcial.
O que os defensores deste ponto de vista não se atentaram foi que, na Venezuela, o regime bolivariano se baseia no exército e nas milícias. Desde a tentativa de golpe fracassada contra seu governo em 2002, Hugo Cháves decidiu reforçar seu apoio junto às FFAA. Mas, em 2008, Chávez também criou a Milícia Nacional Bolivariana, uma espécie de exército político do regime. A MNB é um corpo de cerca de um milhão de pessoas treinadas com cassetetes e rifles, que prometem dar suas vidas pela Revolução. Assim, a Venezuela é um caso de ditadura que abduz todas as instituições de força para seu projeto.
Mas a lembrança da Venezuela nos faz reforçar nosso argumento de fundo. No passado, as Forças Armadas eram os atores centrais para a manutenção dos regimes autoritários. Na década de 1970, a maioria dos regimes autoritários era governada por militares. Com a terceira onda de democratização e o fim dos regimes autoritários, houve uma reacomodação da relações civis-militares. Via de regra, os militares voltaram aos quarteis se afastando da disputa política.
Talvez por isso, quando analisamos os atuais governos populistas, voltemos imediatamente para entender o que se passa nas Forças Armadas. Mas esquecemos que nos atuais regimes populistas são as policias, mais do que as Forças Armadas, que desempenham papel central. Obviamente, o apoio das FFAA continua sendo relevante, mas é a instrumentalização do aparato policial que diferencia os regimes populistas.
Na Hungria, os policiais são um dos principais grupos de sustentação do governo populista de Viktor Orban. Desde que chegou ao poder 2010, o líder do partido Fidesz tem buscado construir laços de lealdade com as forças policiais do pais. Em 2019, Órban incentivou a criação da Legião Nacional, uma espécie de milícia uniformizada, voltada para resgatar os ideais nacionalistas da antiga Guarda Húngara, proscrita em 2008.
Nas Filipinas, as polícias são atores centrais na política de guerra às drogas de Rodrigo Duterte. Entre 2016 e 2019, estima-se que as policias tenham matado cerca de 12 mil civis. O governo admite oficialmente 5100 mortes. Desde 2018, lideranças da oposição tem denunciado a criação de esquadrões da morte voltados para perseguir e eliminar a dissidência política.
Nestes países, a instrumentalização do aparato policial passa pela extensão de benefícios previdenciários, aumento de salários e distribuição de cargos nos governos para policiais. A dimensão simbólica é fundamental. Os líderes populistas procuram aparecer sempre ao lado de policiais, portando armas e usando uniformes. O objetivo é conquistar apoio político quase que incondicional dos policiais. Além da lealdade dos policiais, esses líderes populistas também buscam o controle direto das polícias, passando por cima de prefeitos e governadores.
E é neste contexto que devemos olhar para os riscos da crise do Ceará ganhar corpo e ser justificativa para atos de ruptura por parte de apoiadores do projeto populista de Bolsonaro. Não se trata de uma crise isolada, provocada pelas idiossincrasias e disputas locais ou nacionais da família Gomes, mas de um movimento que retoma a agenda de transparência, controle e supervisão de instituições autorizadas a manter e impor, se necessário, a ordem pública e social prevista na nossa Constituição.
Na atual toada, a visita à Fortaleza programada para hoje (24) dos ministros Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) merece toda a atenção. A depender da modulação do discurso de ambos, saberemos o quanto o Governo Federal está disposto a escalar ainda mais esse delicado momento em que vivemos. Moro foi rápido para nacionalizar o mérito da queda dos homicídios em 2019 e, com isso, terá muito trabalho para se desvincilhar de responsabilidade neste momento.
Seja como for, os episódios desta última semana mostram que o projeto populista de poder em torno de Bolsonaro é muito mais amplo do que as tentativas de cooptar as polícias e conta com apoios em outras instituições de Estado. O que, em outras palavras, significa dizer que o Brasil sob Bolsonaro está muito mais próximo do bolivarianismo venezuelano do que muitos gostariam de assumir.
A torcida é para que as polícias percebam este movimento e não caiam em um canto da sereia perigoso e violento, onde todos temos muito a perder.
*Professor da UNB e membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública