Segurança à deriva

Ricardo Borges/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Números não chocam mais na mesma intensidade; violências são reproduzidas e defendidas mas parcelas significativas da população acham que não passam de bravatas retóricas, já que a retomada econômica se avizinha (sic) e o importante é pensarmos no curtíssimo prazo; instituições de Estado são cooptadas ou testadas cotidianamente mas vale mais dizer que elas estão funcionando; desigualdades estruturais deixam de ser prioridade e voltam a ser cobertas por mantos hipócritas de invisibilidade política e/ou marcar posição e antagonizar o debate, sem espaço para o contraditório ou o convencimento; injustiças sociais não geram mais indignação; entre vários exemplos dos rumos do nosso tempo social.

Vivemos em um tempo em que o tom bélico nos impõe ou a conversão/submissão do outro à nossa justa causa e/ou o seu aniquilamento simbólico e, até mesmo, real. E, sendo bem transparente, não sou louco de dar exemplos à direita, ao centro ou à esquerda, pois isso seria um ‘sincericídio’ político pouco construtivo e pedante da minha parte.

Mas o fato é que esse tempo social nos exige silêncios obsequiosos sobre certos territórios explicativos e dimensões do social e da política. Vamos nos guetificando em zonas de conforto e de saber técnico e fortalecendo figuras messiânicas como Jair Bolsonaro, Damares Alves e Sergio Moro, Witzel, que pouco falam de políticas públicas e embalam até pastéis de vento com seus altos índices de popularidade e com suas promessas salvacionistas.

E tudo leva a crer que assim continuarão a fazer pois falsas equivalências éticas e morais são ao mesmo tempo causa e consequência da eterna espera pela procissão de milagres, que Sérgio Buarque, descreveu nas últimas linhas do seu livro ‘Visão do Paraíso’. A violência não é eticamente interditada e ficamos em um redemoinho de valores, ressentimentos e visões de mundo que aniquila a empatia.

As políticas públicas viram exceção e, na segurança, a empolgação com a queda de alguns índices de criminalidade virou motivo para um cortejo de “vivandeiras alvoraçadas” e para culto ao líder e à personalidade. Deixamos de prevenir a violência e reprimir o crime para surfar na política.

E falo isso pois, em quase 28 anos de carreira na área de estatísticas públicas e monitoramento de políticas de segurança pública, acostumei-me a ver certos temas e propostas que são recorrentes e que são, na prática, palco de disputas quase que insanáveis. Um exemplo é, com a retomada do ano legislativo de 2020, a prioridade do ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, em aprovar proposta de emenda constitucional que tornaria permanente a Força Nacional de Segurança Pública.

Essa proposta é exatamente a mesma que fez, em 2013, a então Secretária Nacional de Segurança Pública, Regina Miki. No entanto, em ambos os casos, não tivemos estudos de impacto e/ou projetos de desenho institucional que mostrem aos parlamentares porque tal medida é mais vantajosa de ser conduzida do que, por exemplo, rever o ciclo de policiamento, que divide a atividade policial em duas e, segundo muitas associações, reduz a efetividade do serviço prestado e a qualidade das investigações.

No limite, a regra vira exceção e todos que falam da importância de monitoramento, avaliação, capacitação, regras de financiamento, mecanismos de controle, transparência e supervisão viram os chatos ou os inimigos das corporações, que precisam de “liberdade para fazer o que tem que ser feito” (que se resume, basicamente, em gastar sempre mais e mais em armas, viaturas e sem controles do uso da força).

Dito de outra forma, a regra só vale na hora de impor a vontade conveniente, como a que escolheu, na semana que passou, o novo Ouvidor das Polícias de São Paulo. A escolha foi feita de acordo com a legislação e João Doria optou por um dos três nomes da lista tríplice. Quem chega desavisado acha que isso é um avanço e exemplo de vitalidade democrática.

Mas, prova do esgarçamento social e da radicalização de posturas, foi que o antigo Ouvidor, Benedito Mariano, que estava na lista tríplice e poderia ser reconduzido, só soube da escolha do Governador por outro nome pelo Diário Oficial. A troca é legítima. Mas um telefonema na noite anterior à publicação seria o mínimo que se poderia esperar.

O respeito passou longe e mostra que ele é um conceito distante na política atualmente – a declaração do Ministro Paulo Guedes sobre os servidores públicos serem parasitas é outro exemplo deste fenômeno e que, felizmente, a Associação de Delegados da Polícia Federal – ADPF foi uma das primeiras a repelir.

Mal estamos no meio de fevereiro e a agenda da segurança já está congestionada e muitos estão fatigados. Em quase todas as situações, a lógica é a da emergência e dos interesses políticos eleitorais, inclusive com vários policiais ativos e inativos mobilizados para serem protagonistas das eleições municipais deste ano. Mesmo programas pensados na lógica do planejamento, como o Em Frente Brasil, tem seus resultados anunciados antes das avaliações serem devidamente concluídas e todos os seus impactos calculados.

O esgarçamento do social não se dá porque antes era coeso e coerente, mas porque vamos perdendo um sentido coletivo de cidadania e de urgência de acesso a direitos civis, políticos e sociais. Acreditamos em cantilenas e deixamos de nos chocar; de nos indignar diante da violência e da injustiça. Tudo vira narrativa. Se não nos agrada, não é válido e é desqualificado. Indicadores, dados, evidências viram sinônimos de magia, alquimias, dogmas.

O drama desse processo é que estamos repetindo o que foi magistralmente narrado em ‘1917′, filme que concorre ao Oscar hoje à noite e que conta a saga de dois soldados britânicos enviados para além das linhas inimigas para avisarem sobre uma armadilha das tropas alemãs.

No filme (alerta de spoiler), um dos soldados morre assassinado pelo próprio piloto inimigo cujo avião havia sido abatido pela aviação britânica e cuja vida ele estava tentando salvar. O segundo, após várias dificuldades para cumprir sua missão, sobrevive e consegue evitar a morte de 1600 soldados mas, ao final, é dispensado pelo comandante militar que ele deveria avisar da armadilha de uma forma extremamente rude e ofensiva.

Em suma, estamos presenciando um tempo social no qual todos que sinalizam empatia social morrem ou são destratados/desqualificados ao cumprirem suas missões, mesmo que estas sejam defender vidas e direitos, valores máximos da nossa Constituição.

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A morte do ex-policial militar do Rio de Janeiro, Adriano Magalhães da Nóbrega, investigado pela morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, na Bahia, merece ser analisada com muito cuidado e atenção. Várias são as variáveis a serem consideradas. O secretário Maurício Barbosa, que foi um dos líderes da proposta de recriação do Min. da Segurança Pública, precisa dar máxima transparência às investigações sobre a morte do ex-PM Adriano Nóbrega para não existirem dúvidas sobre o que ocorreu