No Brasil, segurança pública amplia, promove e expande o crime e a violência

Por Raul Jungmann

Tivemos sete constituições e, em nenhuma delas, o governo central deteve responsabilidades com a segurança pública – desde a primeira de 1824, até a última de 1988. Entre nós, foram as províncias no Império e os estados na República os responsáveis por ela, donde o secular “federalismo acéfalo” em matéria de segurança pública. Estado algum, por óbvio, teve ou tem poderes ou recursos para definir e implantar um sistema nacional ou uma política nacional de segurança. Portanto, nunca tivemos nem sistema, nem política, até o advento do SUSP  em 2018 no governo Temer. Tivemos, sim, planos de segurança pública, vários, cuja duração era a mesma do ministro que os desenhou no cargo.

O artigo 144 da atual Constituição, que dispõe sobre a estrutura da área, diz que “segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. Em seguida, passa a elencar os órgãos que são por ela responsáveis, sendo apenas dois no âmbito federal, a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Uma, a PF, cuida de alguns tipos penais. Outra, a PRF, da fiscalização das rodovias federais.

Em decorrência, o peso da segurança pública é dos estados, que respondem por 81% do gasto total, o governo federal 12% e os municípios o restante. Destaque-se que todas as áreas sociais constantes da Carta de 88 – educação, saúde, previdência, assistência social, esportes, cultura – se constituíram em sistemas, liderados e compartilhados pelo governo federal e se organizam em ministérios. Menos a segurança pública, que afora os 11 meses de existência do Ministério da Segurança, jamais teve nível ministerial exclusivo na administração pública federal em toda nossa história.

Dessa “acefalia” resultam problemas e disfunções graves, das quais a ausência de uma base de dados nacional não é das menores. Como não possui competências constitucionais na segurança, as informações e dados são exclusivamente gerados pelos estados. Até a edição do SUSP, não era obrigatório o repasse e consolidação destas informações pelo Ministério da Justiça e da Segurança. Cabe então a pergunta: como desenhar políticas públicas, de segurança ou qualquer outra, sem dados? Como definir diretrizes, objetivos, metas e, em especial, aferir resultados e custo benefício dos recursos alocados?

A primeira iniciativa federal na área da segurança se dá apenas em 1995, com a criação da Seplanseg, no governo FHC. No governo Lula foi criado o SINESP, um complexo e caro sistema de informações que até 2018 não era capaz de produzir informações nacionais consistentes, porque os estados ou não mandavam os dados ou não aceitavam os critérios de classificação das ocorrências. Enquanto a “acefalia federativa” se perpetuava, o crime organizado se nacionalizava e internacionalizava. Das mais de 70 facções do crime organizado existentes e de base prisional (elas foram criadas no seu interior), ao menos meia dúzia delas são nacionais e avançam em países vizinhos, a exemplo do PCC, atualmente organizado na Bolívia, Paraguai, Peru, Colômbia e Venezuela, além de ser detectado nos EUA. Esse quadro é agravado pelo domínio e controle das facções criminosas do sistema prisional brasileiro.

Das cerca de 1.500 unidades prisionais brasileiras, sua larga maioria encontra-se em mãos do crime organizado. Dramaticamente saturadas, cerca de dois apenados para cada vaga em média, temos a 3ª maior população prisional do mundo, mais de 812.000, nossas prisões são o centro de recrutamento das facções, pela brutal razão que o Estado não garante a vida dos que lá estão. Aqueles então, apenados, buscam segurança nas facções que, em troca de proteção, exigem a subserviência sob pena de morte aos seus associados.

A população carcerária, composta majoritariamente de jovens (cerca de 53%), negros (63%), com baixa escolaridade, não tem acesso a escolarização (90%) ou a qualquer formação profissional ou laboral (82%), cresceu 200% nos últimos 8 anos – e o crime organizado, inexoravelmente, cresce com ela. Mais presos, mais soldados do crime que, de volta às ruas, com poucas chances de reinserção social e presos ao juramento de obediência das facções, vão alimentar a violência nas nossas cidades.

A sociedade, que se sente vulnerável e indefesa, a política e a mídia evitam se dar conta desse ciclo da violência. Ciclo que passa pela juventude das periferias e o sistema prisional, ambos opacos, e cujo foco se dá exclusivamente sobre a violência nas ruas, a exigir mais e mais repressão, e nunca em termos das suas raízes e efeitos que repõem, ampliando, a violência preexistente. Tais raízes e efeitos se encontram na juventude, principalmente negros e na faixa dos 15 aos 24 anos, que têm duas vezes mais riscos de serem mortos de forma violenta, e/ou irem parar no sistema prisional. São eles que sem futuro, nas periferias, vivendo em famílias desestruturadas, vulneráveis, ingressam no nosso sistema prisional, órgão central de “recrutamento para as facções”, sem que antes se lhes tenham dado uma chance de uma vida social e produtiva digna.

Nosso debate nacional para por aí, na repressão: mais polícias, mais armas, mais veículos, penas mais duras etc. O debate e as políticas sobre prevenção social orientada para juventude das periferias ou para a reforma do sistema prisional inexistem, estão interditados. Idem uma nova política de drogas que diferencie os traficantes e usuários sem passado penal, que despejados no nosso sistema prisional são recrutados pelo crime organizado. Uma política nacional de segurança integral começa na prevenção social, passa pela repressão qualificada e não pode desviar os olhos da calamidade que é nosso sistema prisional, que prende muito e prende mal – 48% dos crimes são por furto, roubo ou receptação e apenas 12% por homicídios.

Diante disso, a polêmica sobre quem tem o crédito pela queda dos homicídios é pobre e desnecessária. Ela se inicia em 2018 (ano eleitoral e,e sabiam os governadores, a segurança seria decisiva) e segue caindo em 2019. Porém, o protagonismo não é do governo federal, anterior ou atual, é dos estados. São eles, como já dito, os responsáveis constitucionalmente pela segurança pública, os que arcam com a quase totalidade dos gastos e os que têm os instrumentos adequados, polícia civil e militar. E o que é definitivo: o governo federal e a justiça federal, não cuidam dos homicídios; mais uma vez, isso é responsabilidade da justiça e da segurança estadual.

Na nossa gestão colaboramos, sem dúvida, para a queda dos homicídios. Com ações como o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), a criação de um sistema nacional e política nacional de segurança, que nunca tivemos anteriormente. Como, ainda, a vinculação de recursos das loterias da Caixa Econômica Federal ao Fundo Nacional de Segurança, a alocação de 90 milhões de reais ao Conselho Nacional de Justiça para a digitalização dos dois milhões de processos da justiça penal no país, idem a biometria de toda a população carcerária; a criação da Coordenação de Combate ao Crime organizado na PF; concursos de pessoal para a PRF e PF; ações nacionais com todas as polícias estaduais no combate à pedofilia, feminicídio  e homicídios; uma primeira política nacional voltada para prover trabalho para egressos; recursos destinados à Força Aérea Brasileira para fechar o espaço aéreo na fronteira para o tráfico com a Bolívia e Paraguai e para a Marinha monitorar a Baía da Guanabara e o Exército instalar um centro de treinamento para as polícias no DF, dentre outras ações.

São, sem dúvida, fundamentos para evoluirmos na redução da violência e defesa da vida. Necessários, mas não suficientes, pois carecemos de uma urgente implantação do SUSP nos estados e municípios, de debate e novas políticas nacionais de drogas, reforma do sistema prisional e prevenção social. Esta, orientada para a juventude, e uma repressão qualificada, com polícias isentas de corrupção e interferência política, idem qualidade de vida e autoestima.

O Brasil tem cerca de 2,7% da população mundial e responde por aproximadamente 11% das mortes violentas do planeta. A atual queda dos homicídios não será sustentável se perpetuarmos um sistema de segurança pública centrado exclusivamente na repressão e que alimenta e promove, quando não se associa, ao crime organizado, favorecendo a violência.

*Ex-Ministro da Reforma Agrária, Defesa e Segurança Pública