A lei anticrime e o juiz das garantias
Por Arthur Trindade M. Costa e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*
Quem diria que o instituto conhecido como juiz das garantias seria aprovado em 2019? Mas foi exatamente o que aconteceu. A despeito do discurso de endurecimento penal do governo federal, o Congresso Nacional aprovou uma lei anticrime, cujo ponto mais importante foi a criação da figura do juiz das garantias. O presidente anunciou que, a pedido do ministro Sergio Moro, vetaria alguns itens da lei. Mais uma vez contrariando as expectativas, Bolsonaro sancionou a lei sem vetar o juiz das garantias. Dos 38 itens da lei aprovada que o Ministério da Justiça sugeriu que fossem vetados, Bolsonaro acatou a sugestão em somente 9 itens.
O juiz das garantias é instrumento de controle da atividade de investigação criminal. Na França, Espanha e Portugal, há muito se conhece a figura do juiz de instrução, que atua na fase de coleta de provas. A tendência hoje, no entanto, é a de substituição do juiz DE instrução, que coordena o inquérito, pelo juiz DA instrução, que zela pelas garantias do investigado, e evita a contaminação pelo contato do responsável pelo julgamento com provas ilícitas ou outras ocorrências durante o inquérito que maculem a necessária imparcialidade judicial, como fez o Chile de forma pioneira.
Na verdade, a legislação aprovada e agora sancionada pouco lembra o projeto original do Ministério da Justiça. Dentre várias medidas, o pacote proposto por Moro incluía a implantação do Plea Bargain, espécie de negociação processual existente no direito anglo-saxão, que permite a aplicação de pena sem a instrução e julgamento do caso. Previa também a prisão depois da condenação em segunda instância, iniciando a execução da pena antes do trânsito em julgado, medida considerada inconstitucional pelo STF, e propunha a ampliação da excludente de ilicitude para os policiais que matassem civis em situação de medo, surpresa e forte emoção. Nenhuma destas propostas foi aprovada pelo Congresso.
Como foi possível aprovar um mecanismo que visa assegurar as garantias individuais num cenário em que o Presidente e o Ministro da Justiça radicalizam o discurso de endurecimento penal?
Há quem diga que a sanção presidencial foi uma resposta de Bolsonaro às investigações sobre seu filho, senador Flavio Bolsonaro (PSL-RJ). Nas redes sociais, Bolsonaro foi chamado de traidor pelos apoiadores de Sergio Moro por não ter vetado a proposta. Sem dúvida, a aprovação do Juiz de Garantias foi a maior derrota politica de Sergio Moro em 2019. O episódio evidenciou mais uma vez o impasse político na relação entre Bolsonaro e Moro. O Presidente não pode demitir seu ministro mais popular sem perder significativo apoio popular. Por outro lado, uma saída precoce do Ministério poderá prejudicar bastante as ambições políticas de Moro.
A questão é muito mais complexa do que parece. Ela não se resume às relações entre Bolsonaro e Moro. A aprovação do Juiz de Garantias deve ser entendida como uma reação do Congresso Nacional contra o aumente do ativismo judicial em matéria penal verificado nos últimos anos.
As revelações feitas pelo site The Intercept Brazil mostraram uma estreita colaboração entre o juiz e os procuradores da força tarefa da Lava Jato. Isto gerou uma percepção entre parlamentares e outras autoridades de que era necessário aprimorar os controles sobre a atividade jurisdicional, para evitar os abusos praticados. Afinal, em um regime democrático a persecução criminal tem regras que não podem ser atropeladas, e talvez a mais importante delas seja a da imparcialidade judicial na condução do processo.
É importante lembrar que em agosto, os parlamentares aprovaram a nova lei de abuso de autoridade (Lei 13.869/2019), impondo limites à atuação dos promotores e policiais. A lei também fez alterações relevantes na Lei de Prisão Temporária e na Lei das Interceptações Telefônicas. Por sugestão do Ministro da Justiça, o Presidente vetou 19 dispositivos. Ao final, numa demonstração de força, o Congresso Nacional derrubou 10 vetos. Tanto a Lei de Abuso de Autoridade, quanto a criação do Juiz de Garantias, sinalizam na mesma direção: aumento das garantias individuais contras arbitrariedades cometidas no âmbito do processo penal.
No parecer encaminhado pelo Ministério da Justiça ao presidente sugerindo o veto, o argumento é de que não haveria condições estruturais para a implantação do juiz de garantias. Além disso, haveria prejuízo para a responsabilização criminal de autores de crimes complexos. O primeiro argumento foi refutado pelos defensores da proposta, que demonstraram que uma simples divisão de atribuições entre os juízes criminais já existentes supriria a maior parte da demanda, e em comarcas menores juízes de comarcas vizinhas poderiam cumprir o papel de juiz das garantias, assumindo a tarefa de avaliar os pedidos encaminhados pela polícia investigativa. Importante lembrar que o delegado de polícia continua sendo a autoridade competente para conduzir a investigação criminal no Brasil, e o papel do judiciário continua sendo o mesmo, de zelar pelos direitos e garantias fundamentais em uma etapa ainda muito marcada pela cultura inquisitorial.
A criação da figura do juiz das garantias não resolve problemas estruturais do sistema de justiça criminal no Brasil. Basta citar a questão do ciclo completo de polícia, defendida por muitos especialistas, dando a todas as policiais atribuições de coleta de provas para a instrução criminal, muito mais eficiente do que o modelo brasileiro de divisão do ciclo de policiamento. Também não minimiza a tendência de adoção de medidas populistas e pouco racionais para o combate ao crime, sem resultados efetivos mas agradáveis a uma opinião pública cada vez mais amedrontada e disposta a aceitar a exacerbação dos poderes do Estado contra a criminalidade.
De todo modo, é medida importantíssima, há muito sustentada pelos defensores do modelo constitucional de investigação criminal acusatória. É uma resposta efetiva aos abusos praticados tanto pela Lava-Jato quanto no dia a dia dos processos criminais, em que relações indevidas entre juízes, policiais e promotores acabam por comprometer a lisura do processo. Talvez estejamos diante da mais importante inovação procedimental no Brasil desde a criação dos Juizados Especiais Criminais, que se não produziram todo o impacto desejado na administração judicial dos delitos de menor potencial ofensivo, inovaram no tratamento da pequena conflitualidade social, garantindo a abertura do poder judiciário para crimes que até então eram mediados ou pura e simplesmente arquivados nas delegacias de polícia.
Como toda mudança procedimental, a implantação do juiz de garantias pode gerar resultados imprevistos ou indesejados. De todo modo, abre a possibilidade para que operadores judiciais vocacionados para o exercício de sua função constitucional de defensores dos direitos e garantias fundamentais de todo cidadão que seja alvo de uma investigação criminal, possam exercer o seu papel, evitando a contaminação do processo. A democracia e o devido processo agradecem.
*Integrantes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública