O canto da sereia que pode levar a PM ao descrédito
A Prefeitura de São Paulo registrou, no primeiro semestre de 2019, 9.457 reclamações de barulho na cidade, incluindo os pancadões. Isso é equivalente a 52 ocorrências por dia. No distrito de Vila Andrade, onde fica localizada a favela de Paraisópolis, foram registradas apenas 60 reclamações neste mesmo período, o que é pouco frente ao total da cidade e é emblemático da desconfiança e do temor dos seus moradores em relação ao Poder Público.
E não à toa, a ação policial injustificável da madrugada deste domingo (1), que inacreditavelmente bloqueou saídas e encurralou participantes do baile funk, é uma daquelas ações que nos fazem entender as razões para o descrédito da população com as instituições públicas. Em nenhuma hipótese, uma ação policial que, para prender dois fugitivos, dispersa com brutalidade e violência uma festa com 5 mil participantes pode ser vista como técnica ou moralmente correta.
A Polícia Militar de São Paulo precisa apurar com máxima celeridade, transparência e rigor a sequência dos acontecimentos e a cadeia de comando de uma operação que, até aqui, fugiu de todos os padrões de excelência que marcam a corporação. Não é possível transigir com o descontrole da tropa empregada na operação.
Enganam-se as pessoas que imaginam que a ação visou a manutenção da ordem e louvam a morte de 9 pessoas nas redes sociais e nos comentários dos portais de notícias. A ação contrariou recomendações contidas em vários Manuais de Controle de Distúrbio Civil para que, na dispersão, é necessário controlar o fluxo da multidão e sempre deixar rotas de fuga desobstruídas, para que pisoteamentos e outras tragédias sejam evitadas (a versão vigente de SP é classificada como sigilosa pela PMESP, mas a de 1997, disponível na web, também corrobora tais recomendações).
E, mais, no Controle de Distúrbios Civis (CDC), tropas de choque sejam acionadas e que o policiamento territorial não fique no primeiro plano da operação. Os vídeos que estão circulando mostram policiais armados, sem escudos e no meio da multidão. A chance de confrontos violentos é sempre maior, como acabou ocorrendo. Diante de uma perseguição que acabou enveredando para uma ação de CDC com 5 mil pessoas, em termos de ordem pública, a medida mais adequada teria sido ter desmobilizado a equipe envolvida e acionado retaguarda aérea e pedido de apoio da tropa de choque.
A investigação que foi anunciada pelo Governador João Doria deve buscar saber o que de fato ocorreu e quem autorizou esta ação. Nada justifica o que ocorreu e não é saudável para a corporação tentar minimizar os acontecimentos ou punir apenas os policiais que estavam na ponta.
A Prefeitura de São Paulo, na contramão da transparência, não permite mais buscas no campo de observações das reclamações do SP156, mas, usando dados de 2015 e 2016, o mapa abaixo mostra que pancadões fazem parte da vida na cidade e que, se plotarmos as unidades da PMESP, teremos que tais festas acontecem próximas aos Batalhões e Companhias da PM.
Ou seja, a polícia historicamente sabe e monitora quando estas festas acontecem e tem todas as condições de planejar operações e protocolos de contingência que evitassem uma ação como a desta madrugada, em Paraisópolis. Se não o fez, errou feio. E errou ainda mais sabendo que uma ação como esta jamais ocorreria na dispersão de uma festa em um bairro “nobre” da cidade e/ou em um clube de elite (lembremos a dispersão do Carnaval na Vila Madalena que, mesmo com episódios de confrontos, todos os protocolos são seguidos).
A experiência acumulada com o controle das manifestações desde 2013 é exemplo de que é possível fazer diferente.
É verdade que polícia sozinha não resolve o problema dos pancadões, mas não podemos aceitar, como nos alertou Thiago Amparo na Folha de S. Paulo, a naturalização da truculência. Paraisópolis convive com os pancadões sem nenhuma resposta mais efetiva do Poder Público para a oferta de espaços de convivência pacífica.
Na toada de populismos autoritários, a ação destrambelhada em Paraisópolis acontece dias depois do Governador João Doria publicar a sua Política Estadual de Segurança Pública sem qualquer meta de controle de uso da violência por parte das polícias. Por tudo isso, a PMESP deve evitar o canto da sereia do tempo social e não pode se sentir autorizada a abandonar o investimento de décadas no profissionalismo e na supervisão da atividade policial.
A Força Pública se constrói com confiança e eficiência democrática; não com demagogia e truculência.