A maldição de Caim
A maldição de Caim, que ao matar Abel é considerado pelos Cristãos como o primeiro homicida da história, é uma das derivações teológicas utilizadas como justificativas para a Escravidão. Em 1455, o Papa Nicolau V, promulga a Bula Romanus Pontifex, que dava legitimidade teológica e, sobretudo, jurídica à escravização e à expropriação da África pelo Reino de Portugal.
Nela, a maldição divina sobre Caim de marcá-lo na carne de forma indelével para que não morresse e pudesse viver em constante expiação de seu pecado capital foi associada aos africanos ao afirmar que estes últimos eram seus descendentes e que, por isso, a cor de suas peles era prova jurídica que justificava subjugá-los à escravidão e submetê-los à vontade de Deus.
Ela é base para compreendermos a escravidão no Brasil e lembrar de sua existência serve para jogarmos luz às opções políticos-institucionais do Estado e da sociedade brasileira que fazem com que os negros permaneçam, até hoje, como o segmento populacional mais vulnerável à violência e à criminalidade.
Opções político-institucionais que evitam discutir a questão racial na segurança pública e invisibilizam, mesmo contra todas as evidências, o fato de que para cada pessoa não negra assassinada, 2,7 pessoas negras são vítimas de homicídio. Ou, ao contrário daqueles que defendem que são criminosos matando criminosos, da constatação de que estas mortes atingem a todos: 51,7% dos policiais mortos entre 2017 e 2018 eram negros; e 75,4% das pessoas mortas em intervenções policiais entre 2017 e 2018 eram negras (dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública).
Opções que provocaram, ao longo do Século XX, um apagamento da memória institucional sobre a questão racial e torna extremamente complexo se obter dados e evidências sobre a raça/cor dos indivíduos objetos da atenção das instituições públicas. Falar da maior violência contra negros é ainda tabu no interior do sistema de justiça criminal e segurança pública.
Assim, todo o debate sobre segurança pública fica subsumido aos aspectos técnicos operacionais do funcionamento das instituições de justiça criminal e segurança pública e não incluímos as opções políticas e estratégicas que regem a área no rol de prioridades de reflexão, modernização e reforma. A questão racial é refutada como um não problema da área e os que falam sobre o assunto são rotulados de ideológicos. Vamos reproduzindo acriticamente iniquidades e desigualdades raciais.
E isso é ainda mais relevante pois, em tempos de reforço conservador e de reafirmação das tradições judaico-cristãs, é válido relembrar que muitas dessas tradições não têm nada de inocentes ou divinas e têm suas fundamentações históricas/ideológicas no elo que liga a dominação econômica europeia ao cristianismo e à conquista de territórios.
Por trás do resgate ao discurso de”certas” tradições (outros legados europeus como iluminismo, fraternidade ou igualdade são convenientes esquecidos na atual quadra histórica) e da recusa ao debate sobre identidades ou desigualdades, escondem-se projetos obscurantistas e autoritários que precisam ser trazidos à tona. No caso da segurança, é preciso explicitar que a violência é uma das marcas mais persistentes da sociedade brasileira e até o momento não criamos alternativas à ela.
Dito isso, às vésperas de mais um dia da consciência negra e da reafirmação de dados que mostram o quão violentas, perenes e perversas são as marcas da escravidão no Brasil, fico-me perguntando sobre como superar o nosso déficit civilizatório e contribuir no debate sobre a construção da cidadania ampla e universal no país.
Por certo várias são as saídas e soluções, mas, todas elas, dependem de mobilização social e do que, dadas as referências do tempo, seria uma nova cruzada; uma cruzada dedicada à transparência radical na segurança e à construção de uma ética pública não violenta.