Polícias Militares têm 32,5% de defasagem entre efetivos existentes e previstos; 10 poderiam reduzir postos de coronéis

Alf Ribeiro/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Mesmo com 32,5% de defasagem entre efetivos existentes e previstos nas PM do país, dados revelam que existem distorções na gestão das Polícias Militares do país que priorizam o topo da carreira das polícias em prejuízo ao trabalho na ponta da linha. Simulação do Boletim Fonte Segura (clique aqui), do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, sugere que ao menos 10 Unidades da Federação poderiam reduzir o número de postos de coronéis PM hoje preenchidos. Apenas a PM de São Paulo mostrou-se alinhada ao modelo de gestão que equilibra alocação entre oficiais e praças.

 

O Brasil está diante de uma série de desafios macroeconômicos, sociais e de propostas de reforma da sua máquina pública. Falar de reformas modernizantes é um dos mantras atuais, independente do sentido que se queira dar à modernização pretendida e/ou do espectro ideológico dos diferentes atores e instituições postas no debate público. Porém, na segurança pública, essa discussão é quase sempre interditada e carente de dados que ajudem a traçar cenários e avaliar custos e benefícios.

Prova disso é que quase toda a legislação e as normas que organizam o funcionamento das instituições de segurança pública no país são anteriores à Constituição de 1988, que até hoje não foi devidamente regulamentada. Como já extensamente explorado, a Lei que criou a figura do Inquérito Policial (com mudança em 2013 que foca nas prerrogativas dos delegados de polícia e não no fluxo de trabalho), que é a forma de traduzir um fato social em um procedimento formal de investigação e tratamento judicial, é de 1871; o Código Penal é de 1940 (reformado em sua parte geral em 1984); O Código de Processo Penal é de 1941; a Lei de Execução Penal é de 1984; e, por fim, a  norma que organiza as Polícias Militares, conhecida como R200, é de 1983 (uma nova versão está sendo negociada entre um grupo de Oficiais e o Governo Bolsonaro).

Esses são apenas alguns exemplos da dissonância entre teoria e prática que sobrecarregam a atividade policial e que tornam o cotidiano dessas corporações bastante complexo e dotado de uma baixa capacidade de governança, coordenação e supervisão. Não à toa, as propostas legislativas em curso (pacote dos ministros Sergio Moro e Alexandre de Moraes, entre outros) evitam tocar nos aspectos administrativos da área e optam por caminhar na chave das respostas penais e processuais penais. Pouco se fala de carreiras, mecanismos de supervisão e custo-efetividade de padrões de policiamento e/ou condições de trabalho para os cerca de 600 mil policiais brasileiros.

Em um quadro que tem que lidar com quase 160 milhões de atendimentos das polícias militares todos os anos, cada corporação, de acordo com a sua cultura organizacional e/ou condições fiscais e políticas da Unidade da Federação ao qual está subordinada, decide qual o melhor modelo de gestão e administração de modo bastante autônomo; elas são, em várias UFs, as responsáveis pela gestão de suas próprias folhas de pagamento, atribuição que mesmo as Polícias Civis não têm.

A autonomia das Polícias Militares em si não é ruim. O problema é que, da forma como a arquitetura institucional da segurança pública do Brasil está desenhada, essa autonomia pode ser excessiva se mecanismos de controle e supervisão não forem efetivos e independentes. A boa teoria de Estado demonstra que accountability (transparência e prestação de contas) é a melhor forma de se evitar o Leviatã, ainda mais no seu braço armado e militarizado.

Seguindo essa premissa, o Faces da Violência publica dados do Fonte Segura, que obteve junto à Inspetoria Geral das Polícias Militares do Exército Brasileiro (IGPM/EB), via Lei de Acesso à Informação, vários dados de 2018 que, a partir dessa edição especial, começa a analisar.

Se é importante destacar que os dados da IGPM/EB são os únicos atualizados (O Ministério da Justiça e Segurança Pública não divulga sua pesquisa “Perfil das Instituições de Segurança Pública” desde 2017), também é importante ressaltar que eles apresentam problemas que deveriam ser objeto de revisão. Os dados da IGPM/EB indicam, por exemplo, uma previsão legal de 15 coronéis PM (topo da carreira nas PM) no Rio Grande do Norte. Porém, uma pesquisa na legislação estadual mostra que a previsão correta é de 21 coronéis PM. Já no Ceará ocorre situação inversa, ou seja, há a previsão legal de 25 coronéis PM e a IGPM indica uma previsão de 27 cargos desta natureza.

Seja como for, considerando que se trata de uma fonte oficial, os números fornecidos foram analisados e um primeiro e exploratório estudo foi produzido. Nele, diante da multiplicidade de arranjos organizacionais, os dados brutos são apresentados e as análises não partiram de nenhum cenário ideal, mas da média da própria realidade nacional. Assim, os resultados revelaram distorções mas também demonstraram que nos falta estudos de impacto mais detalhados sobre qual modelo de polícia militarizada é mais aderente aos requisitos e funções fixadas pela Constituição.

Essa é uma discussão em aberto. As Polícias como um todo e as militares em particular detêm mais poder coercitivo do que as Forças Armadas, pois só as primeiras são autorizadas a agirem na manutenção da ordem de plano e sem convocação de um dos Poderes da República em território nacional. E é por isso que é tão importante olharmos para as suas opções político-institucionais e para a forma como estão organizadas.

De acordo com dados obtidos junto à Inspetoria Geral das Polícias Militares, órgão do Exército Brasileiro, as PM do país contavam, em 2018, com um efetivo total de 417.451 pessoas. Se considerarmos os efetivos fixados pelas diferentes leis estaduais, essa quantidade de policiais militares representa um déficit de 32,5% em relação aos 618.556 policiais previstos pelas Leis (figura 1)

O gráfico 1 revela também que, se desagregarmos o efetivo por carreiras e patentes, vamos verificar que o déficit de 32,5% é médio, pois entre os praças (cabos e soldados), o déficit é maior ainda, da ordem de 38,1%. Entre os oficiais, o déficit seria de 27,8% e, entre os suboficiais (subtenentes e sargentos), de 17,9%. Porém, esses valores são apenas parte da questão, exigindo que sejam considerados aspectos subnacionais e se discuta os critérios adotados para a fixação dos efetivos pelas referidas leis.

Segundo o gráfico 2, todavia, não bastassem essas distorções entre os postos intermediários de supervisão policiais, quando observamos os dados referentes ao posto de Coronel PM, topo da carreira de oficiais PM, iremos notar que várias Unidades da Federação estão privilegiando o topo da carreira, com casos em que a quantidade existente é superior até mesmo ao limite legal.

Esse não é um padrão para todos os postos de oficiais, mas bastante realçado entre os Coroneis PM. 14 Unidades da Federação possuem, segundo os dados da IGPM/EB, mais coroneis PM ativos do que o limite fixado pelas legislações locais. São elas: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia e Sergipe.

Entretanto, proporcionalmente, 4 UF chamam bastante atenção. Rio de Janeiro tem o maior número absoluto de coronéis na ativa do Brasil (104) e 33% mais postos ocupados do que os previstos na legislação. Amazonas e Rio Grande do Norte têm 50% mais coronéis ativos do que o limite previsto (Os dados do RN fornecidos pela IGPM são diferentes daquele da legislação loca, que prevê 21 coronéis PM, ou seja, se este número fosse o adotado, o estado teria 42,7% mais postos ativos de coronéis do que o previsto e não 50%). Pará tem um percentual ainda maior de coronéis da ativa, com 75,7%. Mas é Rondônia que supera todas as UF e, proporcionalmente, tem 77,8% mais postos ativos do que previstos.

Várias são as explicações para este fenômeno, mas, objetivamente, o que eles representam na gestão das PM hoje no país não é consenso. Há distorções que priorizam o topo da hierarquia policial militar que precisariam ser mais bem avaliadas e novos modelos de gestão adotados.

Isso porque, nesse momento, não apenas o R200 está sendo rediscutido. O Congresso está discutindo a adoção do termo circunstanciado pelas PM, carreira única, ciclo completo e outras soluções para modernizar as polícias no país. Mas, se não considerarmos as estruturas vigentes, dificilmente avançaremos. Há uma concentração de poder real que deve ser refletida, até para a formulação de novos planos de cargos e salários e programas de valorização profissional.

Na prática, com o modelo vigente, mudanças que não foquem em mecanismos de coordenação e governança e em critérios objetivos de controle externo, monitoramento e avaliação só concentrarão poder nas mãos de um pequeno número de profissionais, com quase ou nenhuma contrapartida na qualidade do serviço prestado à população, já que as UF com as estruturas mais verticalizadas não necessariamente são as com menores índices de criminalidade.

Em outras palavras, reformas substantivas virão quando mecanismos de supervisão, controle e transparência estiverem valorizados e implementados, com o uso de novas tecnologias e com a participação da sociedade e de outros Órgãos de Estado.

Veja a íntegra do estudo em https://fontesegura.org.br/news/