Vida, um compromisso ético inadiável

Com Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência – NEV/USP

Todas as pessoas têm o direito de sair de casa, andar nas ruas, ir ao trabalho ou à escola sem levar tiros dos helicópteros da polícia.Tamanha obviedade nem deveria estar em pauta, considerando que até os menos informados sabem que a Constituição garante o sagrado direito à vida. Mas os disparos do céu contra a própria população fazem parte das estratégias policiais no Rio de Janeiro desde o começo do ano, sem que nenhuma instituição consiga barrar este crime.

Até setembro deste ano, 21 operações policiais foram feitas usando helicópteros como plataforma de tiro no estado, segundo dados da plataforma Fogo Cruzado. Quando esses sobrevoos ocorrem, creches e escolas precisam ser fechadas. Moradores tem que faltar ao trabalho. Crianças são pegas no meio do fogo cruzado e precisaram se esconder para não serem atingidas. Apesar das escandalosas omissões institucionais, moradores de bairros pobres do Rio de Janeiro e do Brasil continuam apostando no Estado de Direito e lutando com instrumentos democráticos para não serem vítimas de autoridades que acreditam no extermínio e na morte como solução política.

Essa luta vem sendo articulada pela sociedade civil de comunidades pobres que vivem esse drama da violência, e que nos últimos anos estão conquistando vitórias importantes.

As Redes da Maré, por exemplo, no Rio de Janeiro, onde vivem 139 mil pessoas, começaram a trabalhar na região com cursinhos preparatórios que já ajudaram a formar mais de 1.200 universitários no bairro. Em 2017, diante das mortes recorrentes e dos abusos que eram promovidos pelas incursões policiais, se articularam com a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e entraram com uma ação civil pública para limitar os excessos. Uma liminar foi obtida para exigir o respeito aos direitos básicos da população, como identificação de policiais, ingresso somente durante o dia, acompanhamento de ambulância para o caso de haver feridos. Essas exigências contribuíram para a diminuição das mortes no bairro e do número de aulas canceladas nas escolas.

As políticas públicas devem promover a vida e não o extermínio e a guerra contra a própria população. Esse consenso vem sendo uma das bandeiras políticas da sociedade civil do Jardim Ângela desde 1996, quando o bairro foi apontado como o mais violento do mundo em um estudo feito pela Organização das Nações Unidas. 

Nos anos que se seguiram, eles passaram a organizar uma caminhada anual, no dia de Finados, e montaram o Fórum em Defesa da Vida com mais de 200 entidades do território. Depois de muita luta, os resultados começaram a aparecer. Um hospital público e moderno chegou à região, polícias educacionais, de saúde e de assistência social passaram a ser acompanhadas de perto. Três bases policiais comunitárias foram criadas.

Essas lutas contribuíram para mudar a região e a cidade de São Paulo, que se tornou a capital brasileira com menor taxa de homicídios.

No último dia 2, no dia dedicado a lembrar dos nossos mortos, outros estados, periferias e quebradas se juntaram ao Jardim Ângela para marchar e promover atos em defesa de políticas públicas que promovam a vida. Esses atos ocorrem em oito estados brasileiros, como Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Espírito Santo, Acre, Minas Gerais, Brasília e São Paulo. Houve slans, movimentos organizados por mães, saraus, caminhadas, construção de memoriais, entre outras atividades. São manifestações culturais e articulações criadas nas periferias para ligar com o processo virulento de violência que muitos desses territórios acabaram vivenciando.

A ideia do movimento foi dar um primeiro passo para que as periferias de todo o Brasil possam trocar experiências e estratégias de luta para cessar esses ciclos de homicídios e levar aos territórios que mais sofrem com a violência políticas públicas que promovam a vida. Não se trata de um desafio utópico, mas é preciso acertar a estratégia e o foco, considerando que 2,1% dos municípios concentram 50% das mortes e que 10% dos bairros dessas cidades, também registram a metade das vítimas, segundo dados do Atlas da Violência, publicação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do IPEA.

Essa luta em defesa do Estado de Direito e por políticas que promovam a vida nos bairros mais atingidos é urgente, considerando a mentalidade genocida de algumas autoridades despreparadas e autoritárias. Se incentivar a violência é uma forma de corromper a sociedade em nome de projetos de Poder, valorizar a vida é compromisso ético inadiável.