A atuação das polícias e as lições que vêm do Chile e de São Paulo
O Faces da Violência publica, em primeira mão, análise feita por Carolina Ricardo* e Bruno Langeani*, do Instituto Sou da Paz, para a edição 12 do Boletim Fonte Segura, que estará disponível na próxima terça-feira, dia 29/10, no site www.fontesegura.org.br (a edição trará também textos da Professora Lucía Dammert, da Universidade de Santiago de Chile, entre outros). O texto destaca a importância das polícias durante grandes manifestações sociais como as que têm ocorrido no Chile e vários outros países da América Latina nas últimas semanas.
São iniciativas como a que o texto analisará, em São Paulo, que irão de fato interferir positivamente na gestão e administração de conflitos sociais. Não é com ameaças retóricas de que o Estado está preparado para reprimir manifestações ou truculência que os problemas serão resolvidos. A ordem social democrática emana do povo e sua direção é guiada pela Constituição Federal de 1988.
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O Chile, um dos países mais desenvolvidos da América Latina, vive uma situação bastante complexa atualmente, vendo sua população descontente indo às ruas, a partir do aumento brusco das tarifas de transporte.
Estopim que revelou descontentamentos mais profundos com inúmeras dimensões da política econômica do país (salários, aposentadorias e desigualdade). Houve manifestações de diversas naturezas, as pacíficas e as que contaram com violência e depredação por parte dos manifestantes. A resposta do governo Piñera veio de forma equivocada, com elevado uso da força por parte das polícias e evocação de um discurso de guerra para legitimar o emprego do Exército. Cenas de violência contra manifestantes têm sido recorrentes.
É evidente que não se trata de uma situação simples, mas seguramente há alternativas para melhor lidar com o problema.
A recente pesquisa de opinião, realizada pela Activa Research, demonstra, que a população chilena entende que as principais medidas que o governo teria que tomar para lidar com a atual crise deveriam ser de natureza política, tais como escutar as demandas e elaborar um plano de resposta. Além disso, a pesquisa mostra que tanto os Carabineros como o Exército tiveram sua atuação mal avaliadas. Fica claro, portanto, que a população esperava outro tipo de resposta que não o uso excessivo da força e repressão.
E quais aspectos a atual situação do Chile tem em comum com o Brasil de junho de 2013? Nossas manifestações também tiveram como gatilho o aumento da tarifa de transportes, nossos governos também foram inábeis em endereçar as demandas legítimas e que poderiam ter sido respondidas por ações não policiais. O que vimos em junho de 2013 foram violência e confrontos e excesso de uso da força ou descontrole por parte das policias em vários episódios.
Mas, é preciso sermos justos, algumas polícias aproveitaram o episódio para aprimorar sua capacidade de lidar com manifestações . E é nesses aprendizados que vale a pena a jogar luz. Quem sabe outras forças possam se inspirar com essas experiências?
Em linhas gerais, há algumas lições importantes de serem seguidas no trato de protestos. O primeiro deles é que o governo deve chamar a responsabilidade para si, dar uma resposta clara e a força policial nunca pode ser a única nem a primeira representante da autoridade presente nas manifestações. Outro importante aprendizado é que o papel da polícia deve ser garantir o direito ao protesto, a integridade dos manifestantes, dos policiais e terceiros não envolvidos com a manifestação, e não frustar estes direitos ou tratar manifestantes como inimigos. Além de ilegal, a percepção de abusos enche e enfurece mais as ruas, ao invés de arrefecer protestos (como vimos aqui e como agora os chilenos comprovam).
Por fim, é preciso que o treinamento e a cadeia de comunicação e comando flua bem para que essa missão esteja clara para o policial atuando na ponta.
A partir desses aprendizados é que surge parceria entre a Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP) e o Instituto Sou da Paz iniciada em 2017. O projeto iniciou-se com uma pesquisa internacional dedicada a olhar boas experiências que pudessem servir de referência.
Após uma análise conjunta, a decisão foi de conhecer as experiências das Polícias de Londres (MET) e da Irlanda do Norte (PSNI), que gozam de forte legitimidade em suas comunidades e superaram históricos períodos de grandes protestos. No mesmo ano, foi realizada uma visita técnica, com dois oficiais da PMESP (um do BP Choque e outro da Área central da capital paulista). A viagem buscou conhecer a experiência de policiais que atuavam nestes eventos, tanto diretamente no terreno, quanto no planejamento, além de observação de treinamentos.
Após a viagem, um relatório técnico foi entregue ao Comando Geral, que foi aproveitado como subsídio para revisão de procedimentos. Em seguida, iniciou-se um projeto piloto na área central da Capital (CPA/M1).
O projeto buscou engajar outros atores públicos das reuniões de planejamento de eventos coletivos já realizadas há anos pela Polícia, tais como Ministério Público, Defensoria e Prefeitura. Diversificar os atores no planejamento amplia os olhares e atenua desconfianças que ainda existem entre grupos de manifestantes e a polícia, além de aumentar chances de acordos.
Por fim, houve um esforço em distinguir no treinamento e na atuação dos policiais a ‘gestão das multidões’, com foco voltado para garantia do direito ao protestos, do ‘controle de distúrbios’ que envolve outro tipo de ação a partir da avaliação de que houve quebra da ordem e de que níveis adicionais do uso da força precisam ser empregados.
A avaliação é positiva. Ações mais planejadas e com informações trazidas pelos próprios manifestantes demandam menor emprego de efetivo policial. Ações com mais treinamento e transparência geram menos risco de confrontos e, portanto, do uso da força. O ano de 2018 teve, segundo dados do M1 (área central), 98% de manifestações pacíficas e nenhum manifestante ou policial ferido.
Por parte da sociedade civil é preciso celebra e incentivar a coragem da PMESP em buscar o aperfeiçoamento constante e, principalmente, por aproveitar o momento de ruas tranquilas para fortalecer sua atuação. Se os gritos que ecoam hoje em outros países da América Latina voltarem ao Brasil é preciso estar preparado com uma atuação que ajude a fortalecer a nossa democracia.
Carolina Ricardo é Diretora Executiva do Instituto Sou da Paz. Bruno Langeani é coordenador do Instituto Sou da Paz. Ambos são associados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.