Os reacionários da política e o DNA policial
Com Alan Fernandes. Major da Polícia Militar do Estado de São Paulo e Doutorando na FGV-EAESP
O Brasil tem assistido um forte movimento de politização das suas polícias, com vários de seus integrantes optando por deixarem suas carreiras para trilharem o mundo da política partidária e eleitoral. Se isso traz, em um primeiro momento, a sensação de que demandas históricas das instituições policiais terão voz e vez nos Poderes Executivo e Legislativo, é fato que também traz tensões sobre papéis e regras de conduta que as polícias devem perseguir.
Em termos ideológicos, como nos lembra o criminólogo inglês Robert Reiner, um dos mais respeitados estudiosos sobre polícia, evidências em vários lugares no mundo mostram que há, por questões históricas e socioeconômicas, uma maior propensão de policiais aderirem às pautas conservadoras e, por isso mesmo, é até esperado que os políticos egressos das fileiras policiais sejam majoritariamente desse espectro político-ideológico.
O problema é que, temos notado que a agenda conservadora tem sido confundida, em muitos casos, com uma agenda reacionária e de apologia à violação de direitos fundamentais. Isso não é ser conservador, mas é ser cúmplice com a banalização da violência e das péssimas condições de vida e trabalho a que são submetidos os policiais brasileiros.
O DNA do policial é, aqui ou em outras democracias, o de proteger o cidadão e garantir que ele possa usufruir seus direitos, sem distinções de classe, renda, raça ou qualquer outra clivagem de identidade.
Sabemos, entretanto, que as concepções dos sentidos do trabalho de polícia ostensiva, que, no Brasil, é realizado pela Polícia Militar, são alvos de disputas históricas e que têm muito a ver com a formação do Estado Nação e a ideologia da segurança interna e de defesa nacional.
Tomando São Paulo como referência, as discussões ocorridas entre as décadas de 40 e 80 transitaram entre a adesão da PM a uma lógica militar, que seria refratária ao emprego da corporação às missões ligadas ao policiamento. Posteriormente, com a redemocratização, novos elementos compuseram essa disputa, com as discussões sobre a aproximação da Polícia Militar à promoção e defesa dos Direitos Humanos.
Essas tensões se intensificaram em relação à formação dos Policiais Militares, em especial de sua elite dirigente, cuja formação funciona desde o início do século passado, no que hoje se conhece por Academia de Polícia Militar do Barro Branco, responsável por ministrar o antigo Curso de Formação de Oficiais.
Em meio a um quadro em que o Brasil experimenta um ciclo de revalorização do papel das Forças Armadas na formação das Polícias Militares, é interessante relembrar que brigas entre os quadros dirigentes da própria escola, transferências e mudanças curriculares são o retrato das constantes disputas entre variados grupos que disputaram, internamente, a hegemonia intelectual da formação policial, conforme nos aponta os trabalhos de Ênio Antônio de Almeida.
Entre avanços e retrocessos, a Academia do Barro Branco, e por consequência, a própria Polícia Militar, vem paulatinamente se posicionando no universo acadêmico como uma instituição que busca promover que suas missões constitucionais, definidas como o exercício da polícia ostensiva e da preservação da ordem pública, se deem dentro de uma racionalidade política, em que estão presentes os princípios da eficácia e eficiência, em um contexto em que a democracia é a base dos arranjos político-institucionais sobre o qual se assenta o papel do Estado.
Porém, considerando que o ensino policial é uma forma de moldar a instituição ao projeto estratégico que a move, que no caso segue os comandos da nossa Constituição, não é surpresa vermos que os modelos de ensino hoje vigentes sejam objeto de sonora contestação e que a Academia do Barro Branco volte a ser palco de um campo de batalha ideológico.
Em artigo publicado no Blog do repórter Fausto Macedo, de 19 de outubro passado, intitulado A Polícia vem perdendo o seu DNA , o Tenente Santini (PSD/SP), vereador pela cidade de Campinas e Policial Militar da Reserva, afirma que a PM de São Paulo “vem passando pela mais grave crise de identidade de sua história”.
Isso não em razão de “baixos salários, equipamentos sucateados, conflitos internos”, mas, segundo ele, uma das raízes que levaram a essa crise é o fato que o Curso de Formação de Oficiais “vem ganhando um viés acadêmico e buscando perfis mais sociais e não combativos, em que o intelecto se sobrepõe a valores seculares como lealdade, constância, honestidade e coragem”.
Esse processo teria acabado “com o moral dos verdadeiros caçadores de bandidos”. Sua argumentação continua por todo o texto, enaltecendo as práticas de “caçar, prender e derrubar bandidos” as quais teriam sido diminuídas por um academicismo dos cursos de formação e por enfoque aos conteúdos voltados à gestão, na capacitação dos Oficiais.
Não fosse pela defesa que o Oficial e Vereador faz em relação às práticas nada aderentes aos primados do Estado Democrático de Direito, teria que sua argumentação soa como um elogio quanto às medidas implementadas nos últimos 30 anos pela Polícia Militar de São Paulo no que se refere à formação de seus quadros, na medida em que retrata que o afastamento das práticas de abuso policial tem composto as lógicas pedagógicas dos cursos da corporação. Sua sustentação é sinal de que, sim, avanços têm sido obtidos.
Avanços que aliam tanto maior respeito ao cidadão, seja no respeito às seus direitos e garantias individuais, seja na oferta de um serviço que promova o enfrentamento à violência e proporcione melhores níveis de segurança.
Não é estabelecendo uma divisão entre os patrulheiros que “se preocupam com sua área de patrulhamento” e os “Billy’s” que, segundo o autor, “são os verdadeiros policiais”, pois “trazem respeito às ruas e levam medo aos marginais”, que se pode pensar minimamente qualquer política de segurança pública.
O panorama descrito pelo autor assemelha-se, muito mais, a um Brasil que lutamos por superar, em que ordem pública e segurança se construíram com base na perseguição, no açoite e na tortura. São ecos do passado que teimam em rondar o nosso contínuo presente.
É preciso que, à semelhança de outras áreas do Estado brasileiro, a capacitação e o reconhecimento dos profissionais que trabalham na segurança pública promovam, indistintamente, respeito aos cidadãos destinatários das ações do governo. Reconhecê-los ou fazê-los atuar como “caçadores” é, tanto, desconsiderá-los nas suas próprias dignidades, como reprodutores de uma política condenável e violenta.
Todavia, como contraponto racional à argumentação do autor, pode-se dizer que os avanços “intelectuais” (apenas para utilizar os mesmos termos do texto em referência) não são contrários aos valores de lealdade, constância, honestidade e coragem. As evidências mostram que maior capacitação acadêmica não afasta a excelência na prestação do serviço policial, mas, pelo contrário, o qualifica.
Atuar em área tão sensível da sociedade brasileira, como é a segurança pública, exige, aliado aos valores éticos citados pelo vereador e oficial, capacidade de fazer a gestão da vida, da liberdade e da integridade dos cidadãos, missões que vão além e afastam quaisquer aproximações quanto a serem os policiais temidos por criminosos.
Mas é preciso, por final, concordar com o vereador em determinado ponto: “a polícia está cansada de políticos que utilizam a instituição como plataforma política em planos de governo”. A língua é, de fato, o chicote da alma.
Nenhum problema em ser conservador, mas todos os problemas do mundo com uma agenda reacionária e que busca manter privilégios e desigualdades; busca manter a polícia como guarda pretoriana de alguns projetos políticos e não como promotora da cidadania.