Polícias, a faixa de posse e o medo dos governantes

Por Jacqueline Muniz*

07/10/2019. O jornalista Rafael Soares, do O Globo, noticia que um PM do BOPE propôs ao chefe do tráfico do Complexo da Serrinha, bairro de Madureira, a morte de um oficial do 9º BPM que comandava operações policiais na área. O conteúdo da matéria é extraído do grampo realizado, com autorização judicial, entre 2014 e 2015. O tom de gravidade do ocorrido e de perplexidade pela sua repetição revela a importância da notícia e que ela não é um mero registro factual. O próprio Elio Gaspari a retoma em sua coluna de hoje, na Folha.

Casos noticiados de aluguel da autoridade policial para propósitos pessoais e ilícitos têm aparecido, com uma regularidade alarmante e, principalmente, como um recurso fundamental para a governança da economia do crime em rede e itinerante. Negociatas retalhistas da carteira de polícia chocam porque dão a medida qualitativa da extensão e disseminação destas práticas  no cotidiano dos fazeres policiais.

No Rio de Janeiro, os arranjos políticos com os domínios armados no atacado, revelam-se incapazes de absorver e coordenar os acertos policiais no varejo. A articulação com os mercados ilícitos pelo topo parece se realizar  por uma lógica de conflito latente e manifesto com os variados acordos saídos da base da pirâmide policial. Tem-se disputas internas por fatias do mercado ilícito nos territórios populares entre integrantes do alto e do baixo escalão e dentro dos mesmos níveis hierárquicos. Como resultado, os contratos com os grupos criminosos, também em disputa frente a pouca durabilidade dos acordos político-comerciais, se tornam ainda mais provisórios, instáveis e de baixa confiabilidade, exigindo atuações violentas ostentatórias, de parte a parte, para fazer valer e atualizar as regras precárias de um jogo econômico milionário.

A inversão informal e a fragmentação invisível da cadeia de comando e controle policial pela autonomização e particularização do poder de polícia, têm rendimentos significativos para a exploração de mercados ilícitos. Possibilitam que cada unidade operacional, cada guarnição e, no limite, cada policial possa fazer, de forma independente, a sua própria “operação policial” e promover sua guerra particular, seja em nome de algum interesse público, seja em seu próprio nome. Não se explicita uma unidade de comando na gestão dos policiamentos públicos e nem se observa uma unidade de comando nas atividades policiais ilegais.

As inúmeras possibilidades individualizadas de ganhos ilegais por policiais que prestam serviços criminosos crescem na medida em que eles são emancipados de qualquer controle institucional e tornam-se livres para operarem de forma avulsa e localista. Isto corresponde a transformar o poder de polícia em um cheque em branco a ser preenchido pelo agente da lei com o lastro de suas clientelas acima, abaixo e ao redor. Tem-se tantos arranjos policiais ilegais possíveis quanto oportunidades de arrendamento de territórios populares para grupos armados.

Não me canso de alertar para o processo em curso de autonomização predatória do poder de polícia que produz governos autônomos e criminosos. Não me canso de falar que a violência e a corrupção policiais são dois lados da mesma moeda negociada dos mercados ilegais que produzem ameaça para vender proteção. Não me canso de dizer que não são os meios (de força) que devem determinar os modos e os fins de sua ação.

Não me canso de repetir que a espada (executora do poder coercitivo da sociedade administrado pelo Estado) não pode, ela mesma, definir a extensão e profundidade do seu corte. Não me canso de insistir que a espada, entregue a si mesma, corta a língua do verbo da política da esquerda e da direita e rasga a letra da lei. Não me canso de esclarecer que a “síndrome do cabrito” (sobe-desce morro) serve para transformar as polícias em mercadorias a serviço de interesses corporativistas, de oportunismos político-partidários e de apropriações privatistas.

Não me canso de avisar que governantes, iludidos com o “tiro, porrada e bomba”, ficam sitiados em seus gabinetes e perdem o governo da segurança. Não me canso de alertar que quando o governante tem medo de comandar as polícias, ele torna os policiais inseguros em seu trabalho e os cidadãos acuados diante de sua polícia.

O medo generalizado tem sido um péssimo conselheiro. Governante, policiais e cidadãos tornam-se presas fáceis das cruzadas moralistas e do estelionato dos senhores da guerra e dos mercadores da proteção. A polícia do bem vai perdendo as ruas para a polícia dos bens. Os cidadãos vão perdendo a soberania do ir-e-vir para a sujeição nos confinamentos grupais e espaciais.

O agravamento do temor tem cumprido o seu papel: destituir as polícias de institucionalidade, miliciando os seus recursos e rifando as vidas policiais. O marketing do terror tem produzido o seu principal resultado: fazer crer que matar tem mérito e que morrer tem merecimento! Fazer crer que há uma guerra contra o crime, o que dá vida e legitima discursos amedrontados e reativos tanto favoráveis quanto contrários!

Não me cansarei de dizer: quem não comanda a segurança não tem como garantir a estabilidade do governo e do exercício de seu próprio poder. Vão-se as mãos da caneta que decreta a “política do abate”. Vai-se a voz que comanda o “tiro na cabecinha”. Fica-se somente com a faixa de posse em um manequim sem medidas, indício de desnorteio emocional e político, memória do fracasso já anunciado. Atrás de policiais que matam e que morrem, têm sempre uma polícia institucionalmente fraca e um governante vulnerável.

 

* Professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense – UFF