O tiro da indiferença que matou Ágatha Félix

Todos estamos acompanhando mais um drama de uma família obrigada a velar e lamentar a morte de uma criança que, em meio ao fogo cruzado de uma insana guerra, foi atingida por uma bala perdida ontem quando estava dentro de uma kombi com a mãe, a caminho de casa, na noite de sexta (20), em uma localidade chamada Alvorada, no alto do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro.

Ágatha Félix tinha apenas 8 anos de idade e, em uma mórbida coincidência, o seu prenome tem origem na palavra grega agathos, que significa “bom, perfeito, respeitável, virtuoso”. Já seu sobrenome, Félix, tem origem do latim e significa “feliz, sortudo, bem-sucedido”. Simbolicamente, essas referências são um tapa na cara da letargia e a indiferença com que lidamos com a violência. A morte de Ágatha é a morte do respeito pela dignidade da vida humana no Brasil; é a morte da esperança.

O quadro é tão grave que motivou inclusive uma correta e enfática nota do Ministro do STF, Gilmar Mendes, no Twitter. Para ele, “os casos de mortes resultantes de ações policiais nas favelas são alarmantes. Ágatha é a quinta criança morta em tiroteios no RJ neste ano. Ao total, 16 foram baleadas no período. Uma política de segurança pública eficiente deve se pautar pelo respeito à dignidade e à vida humana“. Que mais autoridades tenham a lucidez de se posicionarem neste momento.

Em nome da guerra contra o crime, a política de segurança pública de Wilson Witzel ultrapassou todos os limites éticos que pudessem diferenciá-la da ação dos traficantes e milicianos que dominam os territórios abandonados pelo Estado. O espírito de “caça” está sendo estimulado e as polícias estão sendo incentivadas a irem para cima dos “criminosos” independente dos custos ou efeitos colaterais. O que importa são os resultados, argumento que a história tem sido virtuosa em nos mostrar o vínculo com as mais cruéis formas de autoritarismos.

E a declaração do porta-voz da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que se antecipou à perícia técnica ao dizer que “não há indicativo de participação da PM” e que a polícia “não irá recuar”, mostra a insensibilidade e a sensação de as instituições policiais fluminenses poderem decidir sobre a vida e a morte de pessoas sem nenhum tipo de constrangimento e/ou controle da legalidade.

A única declaração eticamente possível era a de que a PMERJ lamentava profundamente a morte de Ágatha e que uma sindicância seria instalada para investigar o que houve e que as autoridades abririam  a possibilidade de órgãos independentes acompanharem.  É assim no Reino Unido; é assim em qualquer país civilizado, em que comissões independentes não são vistas como inimigas, mas como do jogo democrático.

Este é um caso explícito de falta de controle, pois, independentemente da “bala perdida” ter sido disparada por um policial ou por um traficante [lembrando que quase não há operações policiais em área dominadas pelas milícias no RJ], outros órgãos ainda não deram maiores declarações. Um exemplo é o Ministério Público Estadual, que deveria não só exercer sua função de controle externo da atividade policial como, sobretudo, fazer isso de forma transparente e obrigando que a investigação do fato transcorra com a máxima isenção e transparência.

Explorando o espírito republicano de algumas autoridades que preferem atuar dentro da liturgia de seus cargos, alguns líderes como Witzel, Bolsonaro e vários outros perceberam que se falarem mais alto e fazer caras de maus conseguirão impor suas agendas. Eles estão destruindo a institucionalidade do Estado de Direito no Brasil à luz do dia, sem nenhum pudor ou disposição para os formalismos legais.

O padrão operacional das polícias do Rio está superando qualquer métrica ou baliza civilizada e supera, nos seus resultados, até mesmo a retórica de Rodrigo Duterte, das Filipinas, que tem orgulho em defender a morte de traficantes.

Não há equivalência moral, ética ou política entre cobrar o Estado para que aja dentro da lei e com respeito à vida e quando o crime mata algum agente público ou outra pessoa. Quem cometeu um crime precisa ser investigado e punido com o rigor da lei. Não podemos pensar que o crime pode ficar impune no Brasil.

Porém, precisamos, ou melhor, temos a obrigação de cobrar das polícias postura e respeito incondicional aos valores da nossa Constituição. E isso é muito diferente de ser inimigos das polícias e defensores de bandidos. Quem assim pensa só ajuda a incentivar a desconstrução da nação.

A violência faz parte da história do Brasil desde a chegada dos portugueses e que, se não quisermos ser dominados por milícias privadas, temos que nos insurgir contra as injustiças. Em momentos como o que estamos vivendo, não podemos deixar que as instituições sejam cooptadas para projetos autoritários e que violem liberdades e garantias fundamentais.

Se o tiro que matou Ágatha Félix é a morte do espírito da inocência e da bondade, ele ainda pode nos servir de motivação para evitarmos que as milhares de mortes que nos anestesiam sejam a vitória de Kakodaemon, demônio maligno que deu origem à palavra Kako, antônima de Ágatha, no grego.

A maldade ética que impregna muitos dos nossos líderes está envenenando nossas instituições mas ainda é tempo de reagirmos. Temos que romper a barreira da indiferença.