Indulto de ex-policiais é estímulo ao desentendimento entre os militares
Por Jacqueline Muniz*
O anúncio presidencial do indulto a ser concedido a ex-policiais condenados acontece no mesmo período do descobrimento do paradeiro do procurado número 1 do Brasil. Queiroz foi “achado”, ou melhor, mandou o recado público “lembrem-se de mim” através da Veja, deixando-se fotografar no mesmo hospital onde segue fazendo tratamento desde sua internação e local de sua última e autorizada aparição pública. Parece até coisa arranjada, não é mesmo? As lentes da revista foram curiosamente mais rápidas do que a moda persecutória dos vazamentos jurídicos-policiais. Foram, ainda, mais ágeis que os inúmeros smartphones de anônimos que circulam pelo complexo de saúde VIP, seus arredores e nos trajetos feitos pelo paciente, nacionalmente famoso, entre a casa e o centro de tratamento. Muitos deles ávidos por uma live ou foto indiscreta de subcelebridade que permita alguma fama instantânea com a viralização do flagrante do miliciano popstar nas redes sociais.
Há quem imagina, com boas razões, que a polêmica notícia do indulto de natal prometido pelo presidente aos “colegas presos por pressão da mídia” seria mais uma das suas pegadinhas para desviar ou dividir as atenções do caso Queiroz, diretamente ligado ao seu clã. Desta vez a tática usada trouxe um algo a mais. Simular que está a frente de tudo e de que nada foge do seu raio de ação. Para tanto, encena a ficção do comando e controle diretos, performando a fantasia do decisionismo do imediato extraído dos filmes de ação. Obtém-se, com isso, o efeito ilusório de que seria um comandante de artilharia de campanha que resolve tudo na hora, sem mediações e intermediários, sempre disposto a derrotar a lentidão creditada às regras democráticas e a perda de tempo com princípios republicanos.
A questão é que um Governante bate-pronto, com estilo Miojo Lamen, que finge reduzir os tempos da política à instantaneidade expressionista de suas pantomimas para as redes sociais, torna-se refém da necessidade continuada de sucessivos espetáculos histriônicos. Ao invés produzir acordos em torno de consensos mais amplos que produzam estabilidade no exercício de seu governo, precisa funcionar como animador de auditório que joga com a imprevisibilidade das suas reações para manter mobilizados aqueles que são identificados ou que podem ser mais facilmente cooptados como uma plateia fiel. Um dos públicos alvo deste espetáculo de conversão é o universo das praças das polícias militares.
A promessa de libertação de companheiros de farda “injustamente presos” fala alto aos corações e mentes dos PM da ponta que, salvo exceções, se vêem como os “filhos feios do Estado” e como maiores de rua abandonados pela sociedade. São as praças que experimentam as arbitrariedades do chamado militarismo do oficialato e o baixo reconhecimento social. São elas que se sentem perseguidas pelo regulamento disciplinar e pela pouca transparência das justiças militar e comum. São elas que clamam por uma alforria das práticas draconianas dentro dos quartéis que vivificam o lema “a motivação para trabalhar é a punição”. São elas, portanto, as presas mais fáceis da armadilha do indulto de natal. Seu efeito primeiro é renovar e ampliar adesões das fileiras policiais militares ao projeto de poder presidencial: só mesmo um irmão de farda que veio de baixo como nós pode entender o nosso lado e chegar junto!
Se o impacto normativo-legal do indulto tende a ser baixo, a sua manobra política possibilita obter ganhos elevados. Isto corresponde a explorar a tensão latente entre as forças militares policiais e combatentes. Uma demonstração estratégica de medição de força com cúpula das Forças Armadas: enquanto os generais governistas ou insatisfeitos contam com a lealdade disciplinada do oficialato, o presidente mobiliza a adesão afetiva, messiânica, das tropas das PM e do Exército. Se o alto comando militar busca executar um mando vertical a partir das dimensões institucional, corporativa e profissional das forças combatentes, o presidente busca exercer um mando horizontal por meio de uma linha direta e pessoalizada com os milhares de militares subalternos, violando, quando oportuno, os princípios da hierarquia e disciplina, tal como fazia durante sua interrompida carreira militar. Nunca foi tão oportuno estimular os conflitos estruturais entre praças e oficiais no Brasil.
Fica evidente que o capitão feito mandatário do país não tem o habitus que o reconheça como integrante autêntico da classe de oficiais. Seus modos de ser e estar, seus jargões e trejeitos corporais intencionalmente desalinhados e, ainda, seu humor cínico o aproximam do estereotipo do militar de baixa patente revoltado. Uma idealização poderosa do combatente perseguido e injustiçado que exerce um grande fascínio entre os subalternos, cotidianamente silenciados pelos dispositivos disciplinares obtusos e excluídos dos privilégios concedidos aos militares dos círculos superiores.
A promessa do indulto de natal aos ex-policiais de boba não tem nada. Não é somente um desvio de rota da estrada pantanosa que leva ao Queiróz. Trata-se de uma manobra discursiva menos para a sociedade, reduzida a expectadora, e mais para dentro das forças militares, que cumprem o desvio de função de se colocarem como fiadoras ou desabonadoras de governos eleitos. Explora os conflitos de doutrina, competências e capacidades entre as organizações militares combatente e policial. Estimula as rivalidades ocultas intensificadas pelo emprego frequente do exército no policiamento convencional e das PM em operações militares de larga escala nos espaços urbanos. Afinal, no lusco-fusco da promoção da “guerra contra o crime” tem-se militar combatente improvisando-se como policial e militar policial fazendo as vezes de combatente. Na prática, assiste-se o exército, ao seu contragosto, fazendo o papel de “força auxiliar e reserva” que caberia às PM.
É sabido dentro das casernas que as PM e o exército não comungam da mesma tradição militar e não são aliados de primeira hora. Uma piada popular entre os policiais expressa bem a rivalidade entre o tático-operacional da PM versus o operacional-tático do exército. Dizem que num enfrentamento entre as tropas das PMs e do EB a vitória ficaria com as PMs que possuem todo o seu efetivo disponível para pronto-emprego, ao passo que o Exército que só poderia fazer uso de um contingente reduzido para pronta-resposta, já que sua tropa se encontra em níveis distintos de prontidão.
O presidente de baixa patente por convicção sabe e parecer querer jogar com isso. Diante da possível torcida de narizes do generalato e do empresariado frente aos rumos de seu governo, o capitão, insolente e insubordinado por oportunidade, faz saber que poderia contar com policiais militares, compondo uma força particular, uma nova milícia em sua defesa. Aposta suas fichas no enfraquecimento da institucionalidade das polícias para melhor manipular seus integrantes. Seu embrulho anticrime também caminha na direção de reduzir ao mínimo os limites institucionais sobre os policiais. Pega uma carona no SUSP da lei que, por ingenuidade propositiva ou ambição política desmedida, possibilitou a promoção de um clube de serviços acima da necessária integração das organizações policiais, e cujos sócios são os agentes públicos armados de todo país à disposição do ministro extravagante da vez.
Agora a mensagem presidencial da promessa do indulto de natal parece clara: eles que são militares que se desentendam para que eu possa seguir brincando de imperador.
Jacqueline Muniz. Professora da Universidade Federal Fluminense – UFF