No teatro do absurdo, Bolsonaro, Queiroz e o indulto de ex-policiais condenados
No picadeiro que tomou conta do Brasil, as notícias e os fatos são substituídos por narrativas e jogos de cenas que deixariam Martin Esslin (1918 – 2002), Eugène Ionesco (1909 – 1994), Samuel Beckett (1906 – 1989), precursores da tendência conhecida como o Teatro do Absurdo, envergonhados. Afinal, eles inauguraram uma forma de expressão que visava denunciar os horrores da Guerra e das desigualdades e, agora, vemos que suas técnicas estão sendo usadas para desconstruir as conquistas civilizatórias e as noções que ajudaram a conformar uma ética pública baseada no respeito às leis e na garantia de direitos.
E, entre nós, Jair Bolsonaro mostra-se um exímio operador do absurdo e tem conseguido dar o enquadramento do debate político e forçar os limites da institucionalidade democrática. Todas as vezes que suas declarações ou atos de governo provocam reações que eventualmente poderiam sair do controle e fazer desandar sua fórmula polarizadora, o Presidente dobra a aposta e dispara um absurdo maior ainda que, de tão polêmico, faz o passado sumir para que ele mantenha as rédeas da Nação.
Enquanto ele encena o “tiozão do pavê” ou que fica jogando milho aos pombos na praça dos três poderes, parafraseando a música de Zé Geraldo, um projeto de desmonte está aceleradamente em curso sob os aplausos e, mesmo, os auspícios de poderosos grupos transnacionais que controlam os fluxos globais de investimentos e/ou a cena geopolítica e estratégica do mundo hoje.
Mas, mais do que isso, um grupo interno formado por parcela significativa dos oficiais das Polícias Militares estaduais ganha cada vez mais força e, nos bastidores, tem ganhado todas as disputas contra Sergio Moro (que cometeu o erro tático de formar seu gabinete sem nenhum policial militar), Polícia Federal, Paulo Guedes, Forças Armadas (que ficaram assustadas pelo nível de mobilização das PM na reforma da previdência dos militares), entre outros.
Esse grupo vê no Governo de Jair Bolsonaro uma oportunidade de conseguir quebrar o sistema de vetos existente na área da segurança pública que impede, por questões legais, federativas e corporativistas, que mudanças por ele defendidas sejam implementadas (o ciclo completo de policiamento é o maior exemplo público disso). Hoje é quase impossível construir consensos mínimos que atendam tanto aos oficiais das PM quanto os Delegados de Polícia Civil ou Federal. São dois polos antagônicos e que têm travado reformas mais amplas na segurança pública desde a Constituição de 1988.
As Polícias Militares são reguladas por leis e normas que datam de 1983 e ainda não foram completamente modernizadas frente à Constituição. Jair Bolsonaro está negociando a mudança dessas normas (a mais importante é a R200) em uma chave bastante corporativista e sem ouvir, por exemplo, as demandas dos praças (soldados, cabos e sargentos, que são a maior parte dos efetivos policiais). Tudo está sendo definido nos gabinetes federais.
Enquanto o discurso inflamado é usado para tirar foco dos reais problemas, um debate crucial para as Unidades da Federação vai sendo desenhado sem a menor participação dos governadores, que depois terão apenas que pagar literalmente a conta.
De fato, as Polícias Militares são instituições fundamentais para a segurança pública brasileira e não me filio àqueles que veem na desmilitarização a panaceia dos problemas da área. Acho mesmo que as normas que as regulam estão obsoletas e precisam ser ajustadas e modernizadas. Muitos são os regulamentos disciplinares ainda em vigor que consideram mais grave um soldado participar de algum movimento associativista legítimo do que ele, por ventura, se exceder no uso da força.
E é aqui que Bolsonaro e aqueles que o apoiam erram feio. O mais novo factoide do governo, que promete indultar policiais presos “injustamente” merece ser tratado com o máximo cuidado para que o campo de defesa de direitos não seja, mais uma vez, taxado de “defensor de bandidos”. O Presidente tem a prerrogativa de indultar condenados pela Justiça, desde que critérios impessoais sejam seguidos – aliás, o mesmo presidente que disse que não indultaria nenhum criminoso na gestão dele.
E, pela lei, qualquer pessoa, seja ela policial ou não, que tenha cometido crimes de homicídio qualificado, estupro, tortura, tráfico de drogas e todos os crimes classificados como hediondos não pode ser beneficiada por indulto (art. 5º, XLIII, da CF). Ou seja, Bolsonaro não pode indultar policiais ou qualquer outra pessoa condenada com trânsito em julgado por um desses crimes. Não é ser contra ou favor de policiais; é cumprir a lei.
Entre os crimes passíveis de indulto, em sentido inverso, podemos citar aqueles que envolvem organizações criminosas (art. 1º da Lei 12.850/13), associação criminosa (art. 288 do Código Penal) e constituição de milícias (art. 288-A, do Código Penal). Bolsonaro vai, portanto, indultar policiais que cometeram atos de corrupção ou formação de milícias?
Prefiro acreditar que não chegue a este ponto, mas com certeza ele vai puxar o máximo possível para reforçar sua adesão à narrativa de que os policiais são injustiçados e que merecem uma atenção que nunca lhes foi dada e que agora ele os representa (é verdade que os governos de esquerda foram lenientes e não tocaram na arquitetura institucional das polícias brasileiras e chocaram um Ovo da Serpente que agora ameaça nos engolir a todos).
Mas o que mais chama atenção é ver profissionais que tanto se orgulham por investir em análises de cenários e por terem pensamento estratégico se deixarem levar por um canto da sereia histriônico e burlesco nas aparências mas letal institucionalmente. A parcela de oficiais das PM que adere entusiasticamente ao projeto de Poder de Bolsonaro deveria migrar para a arena política e não continuar a comandar instituições de Estado e que devem ser cumpridoras da lei e da Constituição apenas. Há um enorme conflito de interesses que deveria merecer mais atenção.
Por fim, concordo que oportunidades de superação de vetos sejam buscadas e área modernizada, mas vendo Jair Bolsonaro propor indulto aos policiais bem na semana em que a Revista Veja localiza o Queiroz fazendo tratamento no mais caro hospital do Brasil, fica difícil achar que ele efetivamente defende os policiais. Não é a mídia que associou milícias e polícias nesses caso; foi o próprio presidente ao dobrar a sua aposta no absurdo.
Bolsonaro usa os policiais descaradamente e defende tão somente, acima de tudo e de todos, o seu projeto de Poder e o de seus filhos. Quem ganha e quem perde com isso?