Na segurança, as opções ideológicas explicam mais que o dinheiro
Por Jacqueline Sinhoretto*
Se há um consenso no campo da segurança pública é que não faltou investimento nas polícias, no Judiciário e no Ministério Público neste século. Os governos investiram, atenderam demandas por novos equipamentos e tecnologias, priorizaram a área. Houve investimento em formação de recursos humanos e meios técnicos.
No entanto, os resultados colhidos, de modo geral, não reduziram o medo, não pouparam vidas, não enfraqueceram o crime organizado, a não ser em projetos localizados no tempo e no espaço.
E, no momento de crise orçamentária, segurança e justiça criminal precisam de profunda discussão. Custam muito caro para um resultado que a maioria considera insatisfatório. O atual movimento de redução de alguns índices criminais no país todo não pode servir de válvula de pressão para fugirmos do debate sobre novos rumos para a área.
Até aqui, o investimento em segurança e justiça criminal apostou todas as suas fichas em duas tecnologias: policiamento ostensivo e encarceramento. E, como tecnologias sociais, sempre há outras soluções possíveis, que podem ser mais racionais e efetivas a depender de quais são os problemas a resolver.
Não se trata de recusá-las por princípio. A discussão aqui não é ideológica. As tecnologias da ostensividade e do encarceramento servem para resolver um conjunto restrito de problemas. O policiamento ostensivo é uma ferramenta para lidar com delitos que ocorrem nas ruas, em grandes aglomerados, onde há previsibilidade de condutas: colocam-se mais policiais nos locais e horários em que crimes patrimoniais são mais frequentes.
O encarceramento é uma tecnologia disciplinar que atende à necessidade de isolar pessoas por tempo determinado para que não cometam crimes enquanto estiverem detidas. Sua função ressocializadora ou de reforma moral nunca foi comprovada em nenhum lugar, e os projetos de reforma da prisão surgiram historicamente quase junto com a prisão como a conhecemos.
No Brasil, cadeias superlotadas, em que estão presas pessoas que não cometeram crimes violentos, são os locais em que o crime organizado se articulada (ao invés de ocorrer o contrário). As prisões brasileiras são um ambiente de violência extrema, que dinamizam a violência também para fora delas.
Como tecnologias têm funcionalidades, têm também custos e efeitos adversos. Os custos sociais do policiamento ostensivo são bem documentados. O principal deles é o tratamento discriminatório de grupos sociais, que nasce da probabilidade de que naquele grupo exista um número maior de delinquentes.
No mundo inteiro, como no Brasil, o policiamento ostensivo concentra-se em grupos de jovens, negros, moradores de rua e toda sorte de outsiders, como usuários de drogas, migrantes, estilos de vida alternativo. Ao trabalhar com probabilidades e vigilância de grupos e áreas, acaba por reforçar estigmas e discriminações. Também é um efeito desta tecnologia criar um distanciamento social e de confiança entre os grupos discriminados e a polícia.
No caso brasileiro, além do policiamento ostensivo produzir tratamento discriminatório, ainda está aliado às mais altas taxas de letalidade policial do mundo, o que também se reverte em alta exposição dos trabalhadores da segurança à violência.
Se essas tecnologias são limitadas e oferecem efeitos colaterais perversos, como a retórica belicista de Wilson Witzel, entre outras, nos faz lamentar mortes atrás de mortes no Rio de Janeiro, por que as políticas de segurança e justiça insistem tanto em reforçar essas respostas problemáticas?
Aí entra o caráter político-ideológico das opções políticas tomadas pelos governantes e pelas lideranças corporativas de policiais, juízes e promotores. Não importa se prender mais não resolve ou se piora o problema, se policiamento ostensivo produz tratamento discriminatório ou se as taxas de crimes aumentam. O remédio que as corporações receitam é sempre continuar expandindo o uso dessas tecnologias para todo e qualquer problema de insegurança e injustiça. Entramos em um looping que parece não ter fim mas que nos afasta de soluções efetivas e eficientes de redução de todas as violências.
Compreender esse quadro, suas causas e encontrar soluções alternativas têm sido o trabalho dos centros de pesquisa acadêmicos. A Universidade tem um papel central na agenda de reformas democráticas do Estado. E, neste contexto, para impulsionar o debate de ideias, resultados e soluções, uma centena de pesquisadores se reunirá nesta semana na UFSCar, entre os dias 20 e 22, para o “Seminário Violência e Administração de Conflitos”.
O evento ocorre num momento paradoxal: precisamos do desenvolvimento de tecnologias de redução das múltiplas violências e a pesquisa nas universidades está ameaçada por cortes de verba e perseguição ideológica. A inteligência e as soluções racionais são desvalorizadas. As lideranças políticas e corporativas se promovem com promessas ilusórias de soluções fáceis.
As universidades, que podem contribuir para a reflexão técnica sobre os rumos da segurança pública no Brasil, correm o risco de ter suas atividades paralisadas por decisões ideológicas e autoritárias. Os bolsistas estão em desespero. Bem-vindos ao drama.
Jacqueline Sinhoretto, professora de Sociologia da UFSCar e coordenadora do GEVAC (Grupo de Pesquisa sobre Violência e Administração de Conflitos).