Sob Bolsonaro e Moro, um novo ‘tenentismo’ ganha força no Brasil

Muito angustiante ver o cenário distópico narrado no documentário “A privacidade hackeada“, disponível na Netflix. Dirigido por Jehane Noujaim e Karim Amer, o filme, que estreou no último dia 24 de julho, é sobre o escândalo de hackers da Cambridge Analytica, empresa que ficou famosa por acessar ilegalmente dados de milhões de cidadãos norte-americanos durante a eleição de Donald Trump para a Presidência dos EUA, em 2016.

Mas, mais do que isso, o documentário mostra como Steve Bannon, o ex-estrategista de campanha de Donald Trump, explicita o que podemos pensar como a linha mestra da ação do governo Bolsonaro: para dominar é necessário destruir tudo o que antes fora construído em termos de arcabouço institucional.

Esse é o roteiro que tem sido seguido à risca por Jair Bolsonaro, filhos e o ministro Sergio Moro, que têm literalmente passado o rolo compressor sobre quem achava que podia moderá-los, a começar pelos oficiais superiores das Forças Armadas, bem como os Tribunais Superiores. Ciente da disfuncionalidade do nosso sistema político, Bolsonaro investe em ser mais do que ele sempre foi, ou seja, investe para consolidar um novo tenentismo, agora moldado para ser seu exército particular de destruição de resistências e imposição da sua vontade.

Sob o pretexto de valorizar as Forças Armadas, Bolsonaro comparece às diversas cerimônias de formação de novos oficiais das FFAA e vai se colocando como a grande referência da categoria, não obstante as evidências mostrarem que o processo de profissionalização e modernização das Forças Armadas é um empreendimento coletivo dos últimos 30 anos. O Presidente não pensa duas vezes em rotular oficiais das FFAA que dele discordem de “melancia”, de modo a desautorizá-los e enfraquecê-los.

E o mesmo se repete no discurso contra a corrupção, sequestrado pela direita e por alguns operadores e ex-operadores como que se eles fossem paladinos da ética e da moralidade. O problema é que a história mostra que este é um fenômeno que não escolhe espectros ideológicos ou políticos e cujo combate deve ser um projeto de Estado, não de um governo (aliás, ao não assumir o debate sobre corrupção, a esquerda erra feio e dá de presente para a direita os milhões de brasileiros corretamente indignados com as práticas oligárquicas que são parte do Brasil).

E tudo com o apoio ou omissão de parcela significativa dos operadores das instituições de justiça e de segurança. Em nome da “estabilidade”, do combate à “corrupção” e da “legalidade”, as instituições não reagem, ficam atônitas, fazem-se de “cegas” da parcialidade muitas vezes escancarada e/ou se deixam ser abduzidas pelo jogo que, no limite, visa a destruição delas próprias.

A demora do STF na apreciação da arguição de inconstitucionalidade das manobras que fizeram com que os Decretos de posse e porte de armas estejam em pleno vigor é um exemplo bastante eloquente. Quem perde é a sociedade, que fica sem saber o que está ou não de acordo com a Constituição.

Dirigentes das instituições republicanas ficam tentando fazer pontes de governabilidade quando o nosso atual mandatário não as quer e, pelo contrário, visa destruí-las para colocar em prática seu projeto de terra arrasada. Isso fica nítido com a indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada brasileira nos EUA, por exemplo. O objetivo declarado é angariar apoio para a exploração mineral de terras indígenas, num lance geopolítico de submissão estratégica e, paradoxalmente, de protagonismo internacional.

Para o Governo Federal, não existe Estado, mas apenas um governo, sem separação republicana de poder. Por sinal, Ricardo Della Colleta explicitou essa característica ontem (27), na Folha, em reportagem sobre o Itamaraty. O projeto de poder que Bolsonaro representa quer destruir todas as políticas de Estado e reconstruí-las à sua imagem e semelhança.

Agora, no que diz respeito ao tema central do Faces da Violência, é bastante preocupante que um dos eixos desse novo tenentismo esteja em parcelas significativas dos policiais brasileiros. As polícias, que investiram muito nos últimos 20 anos na profissionalização, estão aderindo ao discurso rasteiro de terra arrasada e desconsiderando que quase todas as ações e mudanças que sofreram nas últimas duas décadas foram conquistas que nada, absolutamente nada, são devedoras de Jair Bolsonaro.

Jair Bolsonaro, em realidade, só fez discursos indignados e, quando pôde, não destinou emendas parlamentares para causas policiais ou visitou em solidariedade policiais em greve em vários estados do país. Ao contrário, comodamente esperou a poeira baixar para defender anistias e/ou propor projetos que hoje bate no peito para dizer que estão contribuindo para o combate à criminalidade.

Infelizmente, muitos policiais parecem ter aderido à lógica da polarização e, junto com parcela das Forças Armadas, estão cada vez mais dando forma a esse novo tenentismo, na esperança de serem reconhecidos.

Porém, desculpem meus queridos amigos policiais, esse é um processo de auto-engano, pois Bolsonaro não pensará duas vezes em passar o rolo compressor naqueles, mesmo os mais próximos (General Santos Cruz que o diga) que quiserem assumir liderança ou protagonismo para além do que o seu clã quiser.

Ao contrário do que imaginam, não obstante a crise federativa e republicana vivida na segurança pública, muito do que os permite inclusive protestar, é fruto de uma construção que envolveu milhares de policiais, universidade e sociedade civil. A polícia precisa ser, sim, valorizada, mas não é uma ilha autônoma. As resistências à modernização são fruto do jogo de soma zero jogado na área faz mais de um século.

Por isso, a importância do investimento em padrões de policiamento baseados em evidências, na profissionalização, na existência de Políticas de Estado e no afastamento pragmático das polícias e das Forças Armadas da política partidária (comum até nos EUA, cujo chefes de polícias ou são eleitos ou são escolhidos para mandatos fixos).

O fato é que quem defende o contrário está pensando em seus projetos individuais de poder e não nas instituições e na ordem social democrática fundada pela Constituição.

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Começa na próxima quarta, dia 31, o 13o Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que contará com cerca de 700 inscritos e terá quase 30 atividades simultâneas. Entre elas, a conferência de Lawrence Sherman, um dos idealizadores do modelo de policiamento orientado por resultados, nos anos 1970, nos EUA. Mais informações em encontro.forumseguranca.org,br