Estudo da ONU traz dados que desmitificam a retórica da ‘guerra contra o crime’ no Brasil
Teve pouco destaque no Brasil o lançamento, no último dia 8, do estudo global do Escritório das Nações Unidas para Crime e Drogas – UNODC sobre homicídios. Segundo o levantamento, o número total de pessoas vítimas de um homicídio no aumentou de 395,542 em 1992 para 464.000 em 2017.
No entanto, como houve crescimento populacional maior que o de vítimas de homicídio registrados no período, o risco de ser morto em homicídios diminuiu. Isso fez com que a taxa global de homicídios, por 100.000 pessoas, declinasse de 7,2 em 1992, para 6,1, em 2017. O mundo observa uma redução no números de homicídios e isso precisa ser explicitado, já que vai contra o senso comum e atrapalha os discursos populistas estruturados a partir do medo e do pânico.
Redução que, no Brasil, vem sendo observada desde 2018 e que indica que estamos diante de um fenômeno bem mais amplo do que o discurso valente de ocasião de algumas autoridades e políticos que tentam pegar carona e receber os dividendos desta queda. É necessário monitorar tendências e analisar diversas variáveis antes de acharmos que governo A ou governo B; polícia C ou polícia D são a grande causa da redução (ou do crescimento) do crime e da violência. Estamos diante de um fenômeno bem mais complexo do que o debate polarizado, volátil e efêmero sugere.
E isso é agravado pela forma opaca com que ainda lidamos com dados sobre violência no país. Quem se dedica ao monitoramento de dados precisa ou compilar e padronizar diversas informações ou se contentar com retratos parciais que emergem da boa vontade de alguns dirigentes. Quem cobra transparência ainda é visto como inimigo.
Por certo transparência e informações fidedignas são inimigas dos pensamentos mágicos que voltaram a povoar o Ocidente e que agora mobilizam multidões em novas cruzadas morais que visam conquistar territórios culturais e aniquilar o pluralismo democrático e civilizatório (sim, pluralismo deve ser fundado em valores universais conquistados depois dos horrores de guerras e do sangue de milhões de vítimas da violência). Líderes populistas estressam as instituições e a sociedade com diversionismos absurdos e, sorrateiramente, vão impondo suas agendas e interesses.
A metralhadora verbal de Bolsonaro esta semana é exemplo de que ele está, a meu ver, seguindo um roteiro minuciosamente planejamento para desviar a atenção da opinião pública e garantir que suas ações reais se consolidem, como o decreto das armas de fogo ou o terraplanismo ambiental que seu governo tem implementado. Estamos errando feio na forma como lidamos com o que julgamos devaneios do Presidente mas que são, de fato, ações políticas coordenadas e que visam a fins específicos.
Mas os erros não são apenas políticos. Quando observamos o Estudo Global sobre Homicídios, do UNODC, um dado chama atenção para o fosso entre o que é percebido e o que é realidade na segurança pública. Segundo o UNODC, há condições de afirmar que o crime organizado é responsável por 19% de todos os homicídios do mundo. Ou seja, de cada 5 homicídios cometidos no mundo todo, em 2017, apenas 1 foi causado pelo crime organizado.
E, como no Brasil não temos sistemas de dados criminais transparentes e detalhados de cada crime ou morte cometida, quase todo o debate sobre segurança é debitado na conta das organizações criminosas (ORCRIM), midiaticamente conhecidas como facções.
Muitas autoridades públicas, quando questionadas sobre razões para o movimento da criminalidade, não pensam duas vezes em atribuir às ORCRIM a primazia para a explicação da violência. No imaginário coletivo do país, são tais organizações as vilãs que justificam pacotes “anticrime” e de combate à corrupção que sustentam o discurso do medo e a defesa de padrões de enfrentamento ao estilo “atirar na cabecinha” e/ou “só matando”.
Sim, elas são um enorme problema para o Poder Público, colocam milhões de pessoas no meio do fogo cruzado e as fazem reféns pelo domínio e controle territorial (aliás, neste processo, são muito parecidas com a Milícias). Elas também caçam policiais como em um vendeta, sem que o Estado consiga colocar um fim no poder das facções e das milícias.
Enquanto ficarmos com discursos pueris e diversionistas, que visam mais os interesses políticos e de poder de algumas pessoas e instituições, não será possível avançarmos em estratégias para fazer do país uma nação civilizada menos violenta e valorizarmos os profissionais da área. Hoje, estamos falhando no combate das ORCRIM e das milícias; estamos também minimizando o crescimento da violência contra a mulher e dos conflitos interpessoais. E não estamos falando dos padrões de trabalho que provocam taxas de suicídios policiais muito maiores do que a da população em geral.
A segurança pública é condição para o exercício pleno da cidadania (caput do Art. 5o. da Constituição Federal) e não pode ficar refém seja do crime organizado, das milícias e/ou de líderes com causas pré-iluministas e projetos medievais de poder. Em suma, a violência precisa ser encarada de frente pelas políticas públicas, seja ela cometida por quem for. Uma nação forte e verdadeiramente democrática não pode aceitar a violência ou ter malvados de estimação.