Michele dos Ramos e Felippe Angeli: ao invés de decretos, responsabilidade de governo
Por Michele dos Ramos e Felippe Angeli*
O governo publicou nesta terça-feira (25) mais três decretos sobre posse e porte de armas e munições. Desde o início do governo há seis meses, foram seis decretos sobre o tema. Além dos decretos, o governo também apresentou um projeto de lei que confere ao Executivo a possibilidade de ampliar as categorias com acesso ao porte (atribuição do Legislativo), dentre outras medidas.
Nesse cenário, é importante discutir a responsabilidade do governo federal ao lidar com uma agenda tão importante para a segurança pública do país. Seria ótimo se pudéssemos relatar neste espaço a consulta do Executivo aos 14 governadores que se manifestaram contra o conteúdo dos primeiros decretos, reforçando o impacto negativo das mudanças na segurança pública de seus estados e no próprio trabalho de suas polícias.
Ficaríamos ainda mais contemplados se fosse possível destacar o compromisso republicano do atual governo para dar continuidade às ações de consolidação do Brasil como uma referência de regulação responsável de armas e munições para a América Latina e para o mundo, como bem reiteraram os 12 ex-ministros da Justiça e Segurança Pública que também se manifestaram contra os primeiros decretos presidenciais. Tais ações do governo federal, infelizmente, até agora não aconteceram.
Precisamos que o Executivo se engaje no aperfeiçoamento de mecanismos de controle de armas e munições para evitar que elas caiam na ilegalidade e nas mãos dos criminosos, ao invés de seguir na edição e reedição de decretos que tornam esse trabalho ainda mais difícil. Todas as pesquisas de opinião mostram que a maioria da população está longe de acreditar que mais armas nas ruas tornarão o Brasil mais seguro: de acordo com o IBOPE, 73% dos brasileiros são contrários à flexibilização do porte de armas.
Arriscamos dizer que é bem provável que a população brasileira prefira que a energia do governo dedicada aos seis decretos sobre armas e munições seja dirigida ao compromisso de campanha com a redução do desemprego no país, ou mesmo ao compromisso de governo com o enfrentamento do crime organizado.
Depois do Senado votar pela inconstitucionalidade dos decretos do governo na última semana, às vésperas da votação na Câmara (que muito provavelmente votaria da mesma maneira) e do início da votação da inconstitucionalidade dos decretos também no Supremo Tribunal Federal na manhã desta quarta-feira, o governo poderia revogar os decretos, mas jamais publicar outros três com conteúdo praticamente idêntico, caso realmente a “humildade” e o “respeito ao Parlamento” prevalecessem no Executivo federal.
O sistema democrático não é uma disputa de cabo de guerra, de uns contra os outros. O uso de artifícios legais e manobras para protelar a votação e o julgamento da inconstitucionalidade dos decretos, bem como a insistência na defesa de seu conteúdo como vontade da maioria da população, desconsiderando todos os fatos contrários a isso, estão longe de reforçar o pacto e o equilíbrio de funcionamento dos três Poderes.
Discussões centrais para a segurança pública no país não estão sendo realizadas, opiniões de gestores e profissionais da área são desconsideradas e conquistas de décadas de trabalho não saem do papel. Na democracia, não há como substituir o diálogo e a criação de consensos por uma tentativa da lei do mais forte. Se assim o for, nos enfraqueceremos todos.
A insegurança e a violência no país seguem sendo um dos maiores obstáculos para nosso desenvolvimento humano, social e econômico. Como representantes de organizações da sociedade civil e cidadãos, reforçamos as vozes para que nossos esforços e recursos sejam direcionados, de maneira mais do que responsável, à garantia do direito à vida e à segurança de todos os brasileiros e brasileiras. Sobressaltos, retrocessos, insegurança jurídica e pouca disposição ao diálogo com vozes divergentes não são bons conselheiros para políticas públicas e muito menos para a democracia.
É preciso estabelecer um limite no descaminho das propostas sobre armas e munições no país em que mais de 42 mil pessoas são mortas por armas de fogo todos os anos. O governo produziu uma média de um decreto por mês para que se vendam mais armas e para que mais pessoas possam andar armadas nas ruas. Para onde estamos indo?
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Atualização 16:23: um sétimo decreto foi publicado na noite de 25/06 (decreto Nº 9.847). Ele revoga, dentre outros, o decreto Nº 9.844, que havia sido publicado no próprio dia 25/06 e dispunha sobre mudanças nos critérios de concessão de porte de armas de fogo. No projeto de lei apresentado pelo presidente ao Congresso, a competência sobre este ponto passaria do Legislativo para o Executivo.
Michele dos Ramos, Assessora Especial do Instituto Igarapé
Felippe Angeli, Gerente de Advocacy do Instituto Sou da Paz