Um arco-iris no caminho da ultradireita populista brasileira

Rodrigo Mitsuro Martins/FBSP
Renato Sérgio de Lima

Milhões de pessoas lotaram a Avenida Paulista hoje (23) em São Paulo e ativamente apresentaram-se durante a 23a. Parada do Orgulho LGBT como peças de resistência à onda de ultradireita populista e autoritária que tomou conta do Brasil a partir da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Contra o discurso misógino, homofóbico e naturalizante de preconceitos e do ódio, milhões de pessoas deram prova de que as melhores armas são a tolerância e a promoção de uma agenda de direitos pautada no reconhecimento das múltiplas identidades e na diversidade.

Aqui no Faces da Violência já se falou bastante da pesquisa “Medo da Violência e Autoritarismo no Brasil“, realizada em 2017 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com o Datafolha. Segundo essa pesquisa, a população adulta com 16 anos de idade ou mais tinha uma propensão de adesão a valores autoritários de 8,1, em uma escala de 1 a 10. A eleição de Jair Bolsonaro comprovou que a pesquisa estava correta, uma vez que sua plataforma eleitoral foi baseada, na essência, na estética da violência e na defesa de um discurso de intolerância e polarização extrema. Bolsonaro não é causa mas sintoma do profundo “mal-estar civilizatório” que varre o ocidente e coloca em risco as democracias, como bem expôs Thiago Amparo nesta Folha, ontem (22), ao falar sobre a Hungria.

Aliás, ao falar sobre os riscos à democracia, os vazamentos de mensagens entre o ex-juiz Sergio Moro e os membros do Ministério Público Federal que integravam a Força Tarefa da Lava-Jato explicitaram a fragilidade do nosso estado de direito e, mais, mostraram o quão complexo é construir instituições verdadeiramente republicanas. Em nenhuma nação civilizada do mundo os fins justificam os meios e/ou  que a mídia esteja submetida à censura prévia dos donos do poder, mas, mesmo assim, é impressionante ver hordas de fanáticos defenderem sem nenhum pudor a punição da divulgação das mensagens. E não só, as redes sociais foram inundadas com pedidos de prisão e deportação do advogado e jornalista Glenn Greenwald, responsável pelo The Intercept.

Quando imaginávamos ter superado a ditadura de 1964, a campanha pela prisão e deportação de Greenwald nos faz lembrar do triste episódio da expulsão, em 1980, do padre Vito Miracapillo, que se recusou a celebrar missas em comemoração ao 7 de setembro. O padre italiano que trabalhava na cidade de Ribeirão, Diocese de Palmares, em Pernambuco, foi expulso do país a pedido do então prefeito da cidade, Salomão Correia Brasil, e do deputado estadual Severino Cavalcanti, então no PDS, que depois seria Presidente da Câmara Federal e terminaria envolvido no escândalo do mensalinho.

O episódio do vazamento das mensagens entre o ex-juiz e atual ministro da Justiça e Segurança Pública e os procuradores da Lava-Jato também escancara uma injustiça com os quase 700 mil policiais brasileiros. Isso porque as polícias são as instituições que levam quase que toda a culpa pela tragédia da violência e, paradoxalmente, são as instituições mais transparentes e controladas da área. Pouco sabemos sobre as engrenagens e atividades das demais instituições.

Eduardo Anizelli/Folhapress

As polícias têm demonstrado um censo de responsabilidade que merece destaque. E, retomando a pesquisa sobre autoritarismo, um dado que ainda foi pouco trabalhado e que talvez explique o comportamento das polícias e a força do movimento LGBTQ+ é que, simultaneamente ao brasileiro se mostrar propenso a aderir à pauta autoritária, uma outra bateria de perguntas deu pistas de como seria possível se contrapor ao discurso que ganhou força nas eleições e teima em querer ser hegemônico e impor seu modelo de ordem para a população.

Segundo a pesquisa, enquanto a adesão a valores ditos autoritários atingia 8,10 na escala, a propensão de aceitar a agenda de direitos civis, humanos e sociais prevista na nossa Constituição era de 7,83.

Tecnicamente essa segunda escala mostrou-se menos sólida e consolidada do que a primeira, mas se a olharmos atentamente veremos que, nela, a luta de quatro segmentos sociais ganharam destaque, a saber: os movimentos LGBTQ+; de mulheres, de negros e de luta contra a pobreza. O movimento LGBTQ+, mesmo com os altos índices de violência contra este segmento da população que o Atlas da Violência 2019 revelou, conseguiu mostrar que o homossexualismo não é crime ou doença.

Ou seja, o movimento LGBTQ+, entre outros, consolidou a agenda de direitos como uma narrativa forte a fazer oposição ao projeto de poder da família Bolsonaro e seu exército de seguidores. E, por esta razão, nada mais natural, politicamente falando, do que ver a Parada do Orgulho LGBT como uma prova de força e resistência.

Entretanto, para avançar, a pesquisa revelou que a defesa de direitos e da cidadania não pode ficar circunscrita à luta de um segmento, por mais justo e legítimo que este seja. Precisamos oferecer uma renovada narrativa sobre a incorporação de todos enquanto sujeitos de direitos; uma narrativa que reconheça e respeite as diferenças mas que não deixe o discurso da nação apenas para os órfãos da ditadura.

O problema é que teremos que lidar com o discurso autoritário, que tem usado o necessário combate à corrupção como cortina para empreender enormes esforços de conquista da hegemonia e tem flertado com medidas que soam (e são) como contrassenso (retirada de radares nas rodovias, proibição de multas para quem anda com crianças sem cadeirinhas de proteção, volta do passaporte com o brasão da República, ampliação do porte de arma, estudo para diminuição dos impostos dos cigarros, ampliação da excludente de ilicitude, cortes de orçamento na educação, fim da tomada de três pinos, entre outros “shows de bobagens” reconhecidos até pelo General Santos Cruz) porém mobilizam e batem fundo nas representações sociais e nos valores da população, reforçando-os.

Há muito o que ser feito e é positivo ver o movimento LGBTQ+ assumindo seu protagonismo nesta batalha civilizatória.