Violência no Brasil e a saudade de ‘Dick Vigarista’ e a ‘Quadrilha da Morte’

Fernanda Canofre/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Na semana em que o Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicaram o Atlas da Violência 2019, com dados do sistema de saúde sobre mortes violentas, o Brasil presenciou um bom retrato do nosso tempo social. Ao invés de os dados mobilizarem autoridades e população na busca de soluções e para que o tema fosse discutido de forma séria e com base em evidências, os últimos dias foram palco de uma série de acontecimentos que confirmam como a violência está naturalizada no cotidiano do país.

Segundo o Atlas, o Brasil teve 65.602 pessoas assassinadas em 2017. E, aqui, o primeiro dado inquietante, ou seja, o número apurado pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, indica o registro de 1.707 mortes a mais que o divulgado pelo próprio fórum em seu anuário, que tem como base os dados das secretarias da Segurança. Atingimos uma taxa de 31,6 mortes violentas para cada 100 mil habitantes.

Como bem alerta o Atlas, em uma premissa de honestidade metodológica e transparência, “segurança pública e saúde contam com metodologias distintas para contabilização das mortes, pois seus sistemas de informação servem a propósitos distintos. Para o sistema de segurança pública e justiça criminal importa saber se houve ou não um crime e tipificá-lo de acordo com a categoria penal correta, ao passo que para a saúde importam as informações de cunho epidemiológico relacionadas ao perfil da vítima e em que contexto morreu”. No entanto, se os dados de ambas as fontes nunca serão iguais, eles precisam seguir uma mesma tendência para serem considerados fidedignos.

O Atlas mostra que ambas as fontes apresentam a mesma tendência e números bastante similares entre 2013 e 2017. Todavia, entre 2014 e 2016 a diferença entre os dois sistemas não ultrapassava 1,4%. Porém, em 2017 a diferença atinge 2,7%”, em um indicativo de algo ocorreu em uma das duas fontes e que exige mais estudos e avaliações. Ou seja, a queda apurada em 2018 e 2019 no índice de homicídios no Brasil todo sobe no telhado em sua intensidade. Acredito, com base em outros dados da área, que ela seja verdadeira, mas somente uma auditoria mais detida e a máxima transparência nos critérios de contabilização das polícias poderão afastar dúvidas sobre o tamanho dessa queda. É possível que ela esteja inflacionada.

Mas ao colocar a redução da violência de 2018 e 2019 em dúvidas, o Atlas mexeu com as certezas daqueles que endeusam o governo Bolsonaro e foi solenemente ignorado pelas autoridades. Reconhecer que os dados precisam ser auditados ou que é necessário aguardar mais alguns meses para que uma nova tendência seja confirmada seria o equivalente a reconhecer que a comemoração da queda foi precipitada e afoita.

E, até por isso, é mais interessante para o séquito que adora o guru de Richmond e seus comensais da morte (e não se interessa em como ele se mantem e/ou quais os vínculos com a Atlas Network e outros think tanks de ultradireita) tentar desqualificar o porta-voz, independente da seriedade técnica com que os dados são divulgados. Por essa tática, nas redes sociais, a repercussão dos dados entre aqueles que acreditam em duendes ou na terra plana mostrou-se completamente alheia ao conhecimento científico acumulado ao longo de séculos pela humanidade.

E não foram poucos os questionamentos. Levantamento no Twitter mostrou um ataque coordenado em termos e questionamentos sobre o Atlas (aliás, essa coordenação chama bastante atenção pois há quem acredite na liberdade que as redes possibilitam mas que não se atenta para o risco de manipulações e estratégias digitais de condução do debate público). Entre os principais ataques de usuários pelo Twitter, destaco cinco dele, a saber:

1)Dados da pesquisa são de 2017. Sim, são, pois o sistema de saúde trabalha com dois anos de defasagem pois depende não só do registro mas da conferência e consolidação dos microdados. É fato que os dados podem parecer antigos para quem tem que lidar no cotidiano com crime e violência, mas para o estudo epidemiológico e de formulação de políticas de segurança pública, eles são ferramentas fundamentais.

2)Negros morrem mais porque são maioria no Brasil. Sim, mas esse é outro sofisma de quem não quer reconhecer a existência de um problema racial no país, pois se mais de 70% das vítimas de homicídios enquanto a composição entre a população está na casa dos 50%, temos uma sobre-representação de negros entre as vítimas gostemos ou não. O Brasil tem uma dívida histórica com os negros.

3) O perfil de quem morre é o mesmo de quem mata (homens negros). Não há pesquisas que confirmem essa tese, por mais que, em razão de outras evidências sobre o perfil dos mortos e características do crime, ela é possivelmente verdadeira. Mas isso não anula o fato de que entre negros a violência é maior e, se todos são cidadãos, cabe ao Estado pensar em estratégias de prevenção e redução dos homicídios de qualquer modo.

4)O Atlas reflete a herança do PT. Em certa medida, sim, a edição 2019 reflete os anos do PT no Governo Federal, mas não só. Ela revela como somos lenientes e complacentes com a violência no país. A violência faz parte da nossa história e não começou em 2003. São várias as causas e razões que estão associadas e quase nenhuma foi ainda enfrentada pelo Governo Bolsonaro. O PT não foi em nada diferente na segurança do que a direita e muitos dos problemas hoje enfrentados poderiam ter sido mitigados ao longo do período em que o partido esteve no Poder.

Por fim, uma quinta crítica associa o FBSP ao bilionário George Soros e à Folha como fatores de descrédito. É até engraçado pois hoje jornalismo profissional virou sinônimo de ideologia e ser transparente com os financiamentos recebidos virou motivo de críticas. Sim, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública recebe recursos de parcerias com a Fundação Open Society criada por Soros e o faz dentro do cumprimento estrito da legislação brasileira e dos EUA, com transparência, balanços contábeis e auditorias independentes. E, para quem não sabe ou para quem gosta de fazer ilações sobre os interesses em jogo, a Open Society tem uma rigorosa política de compliance que impede, por exemplo, que ela doe mais do que 33% do orçamento anual de qualquer entidade por ela apoiada. Isso para não gerar conflitos de interesses e/ou dependência.

E isso não se aplica apenas ao Atlas. Um importante lobista das armas colocou em xeque a pesquisa do Ibope que mostra que a maioria da população é contra o porte de armas indiscriminado porque, na opinião dele, 2 mil entrevistas não seriam suficientes para retratar a opinião da população. E, em se tratando de quem é, ele com certeza tem ao menos noções rudimentares sobre estatística e probabilidade. Mas, mais do que discutir evidências, o objetivo de seu posicionamento foi o de mobilizar as suas hordas de zumbis e desacreditar quem trabalha seriamente. Conhecimento? Às favas com o conhecimento, o importante é ganhar no grito e nas estratégias digitais de manipulação da opinião pública.

E o que é dito nas redes: falar sobre homicídios da população LGBTQ+ ou da violência contra crianças? Não pode, isso é ideologia de gênero e vitimismo. Falar do crescimento dos feminicídios ? Também não pode, isso é ideológico pois a maioria das mortes é de homens. Armas de Fogo? Sacrilégio, já que todos têm o direito quase que divino da autotutela e de liberdade de escolha. Falar de prisões e drogas? Nossa, somos inconsequentes pois estaríamos defendendo bandidos, que eles morram enfileirados ou se matem, temos mais que nos vingar.

Daria para escrever centenas de páginas sobre o retorno da alquimia e do pensamento mágico como nortes das representações sociais acerca da violência e da segurança pública. Mas, para concluir, será que os mesmos que defendem a violência como política de Estado e armas como liberdade individual seriam coerentes e defenderiam o aborto ou a descriminalização da maconha? Provavelmente não, pois coerência é algo que não exatamente guia o humor da sociedade atualmente.

O Brasil ganhará muito quando conseguirmos vencer a violência desenfreada revelada pelo Atlas da Violência 2019 e também ganhará quando aprendermos a lidar melhor com os interesses e lobbies por trás da “espontaneidade” das redes sociais.

Enquanto isso, distante da realidade, o presidente Jair Bolsonaro anda de Jet Ski; patrocina a versão brasileira da corrida maluca, desenho animado que fez sucesso nas décadas de 1960 e 1970 com personagens como Dick Vigarista e a Quadrilha da Morte, ao enviar projeto que incentiva mais violência no trânsito; entre outras pirotecnias de uma narrativa que ignora fatos e realidade e abusa do pânico e do conservadorismo da população do país.