Dados negam que aumento da letalidade policial gera redução dos homicídios

Ricardo Borges/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Com Sofia Reinach (MIT e Fórum Brasileiro de Segurança Pública)

Os dados referentes aos últimos meses têm apontado para uma redução de mortes violentas no país todo. Ao mesmo tempo em que os homicídios caem, se verifica também um aumento das mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP).

E, diante desse movimento, já há quem defenda que o aumento do uso da força letal da polícia seja o responsável pela redução dos homicídios, uma vez que os “bandidos” estariam inibidos pela disposição das polícias em enfrentar o crime de forma “firme”. Nada mais falso. Estamos diante de um sofisma; de uma falsificação argumentativa que desconsidera várias evidências em nome de posturas ideológicas.

Entre as evidências desprezadas pelos defensores das Mortes Decorrentes de Intervenções Policiais, independentemente das necessárias investigações para a determinação da legitimidade de cada ação, vale frisar que o Brasil também apresenta altas taxas de mortes de policiais. Além disso, por certo mortes são inerentes à atividade policial, mas elas precisam ser esclarecidas para que não restem dúvidas sobre a legalidade e legitimidade de cada ocorrência. “Mirar na cabecinha” não é política pública de um Estado de Direito.

Mas para além dos discursos,  o que dizem os dados?  Está, de fato, ocorrendo um conflito direto e efetivo, do ponto de vista da política de segurança pública, entre polícia e “bandidos” que indicaria que a polícia está se impondo pelo padrão de uso da força? Algumas evidências apontam que a resposta é “não”.

Em meio ao apagão estatístico que ainda marca a área no país, vale retomar alguns estudos existentes como os elaborados por Sofia Reinach para curso na Universidade de Harvard, nos EUA. Segundo esse estudo, uma análise comparativa do perfil das vítimas da polícia e da população carcerária no Estado de São Paulo aponta divergências dignas de destaque.

Essa análise foi feita utilizando dados de 2014 e 2015 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e dos Boletins de Ocorrência registrados no Estado e, dado que não houve grandes mudanças nos perfis estudados, não devemos ter mudanças significativas para anos mais recentes. Para viabilizar a análise, considerou-se que o perfil da população carcerária seria idealmente uma proxy (ou uma aproximação) do perfil de pessoas que descumpriram a lei e, portanto, seriam alvo da ação policial e/ou envolvidos em confrontos. Ou seja, seria de se esperar que o perfil da população penitenciária seria coincidente com o das vítimas de ocorrências policiais com resultado morte.

No entanto, não é isso que encontramos na apuração dos dados. Enquanto 4,7% da soma da população que cumpre medida socioeducativa com a população carcerária do Estado está na faixa entre 0-17 anos, 22,56% das vítimas da polícia está nessa mesma faixa etária. Na faixa entre 18 e 24 anos estão 27,72% da população carcerária e 43,8% das vítimas de MDIP. Em outras palavras, a polícia mata pessoas mais jovens do que a proporção dessa população no sistema carcerário.

Essa mesma comparação por recorte de raça demonstra que 53,58% da população carcerária é negra (pardas e pretas somadas). Enquanto isso, os boletins de ocorrência registram que 60,61% das vítimas da polícia são negras. Apesar de a diferença não ser tão grande quanto a das faixas de idade, ela não deixa de ser significativa.

O que se pode concluir na análise desses dados é de que existe uma chance maior de as vítimas da polícia serem jovens e negros do que de outros grupos populacionais. Assim, temos um primeiro descompasso nos dados que nos levam a crer que existe um viés nas mortes decorrentes de intervenção policial. No entanto, a ideia de que as mortes ocorrem em momentos de conflito e que estão correlacionadas fica ainda mais frágil a partir da análise espacial do local onde ocorrem os homicídios comuns e as mortes causadas pela polícia.

O georreferenciamento das mortes ocorridas no município de São Paulo entre os anos de 2015 e 2016, a partir dos dados disponíveis nos boletins de ocorrência, demonstra que os homicídios comuns e as mortes decorrentes de intervenção policial se concentram em áreas diferentes da cidade. Os dois fenômenos não guardam relação entre si.

 

Mapas de Calor das Mortes Decorrentes de Intervenções Policiais e das Mortes de Policiais – 2015-2016

É possível verificar ao olhar para os mapas acima que os homicídios comuns se concentram no centro da cidade e na zona sul. Nesses mesmos anos, houve uma concentração das mortes decorrentes de intervenção policial nas zonas leste e norte da cidade. Naturalmente que existe uma tendência de coincidência da ocorrência desses crimes ocorrerem nas regiões mais violentas da cidade. Porém é evidente a diferença de concentração do local onde ocorrem essas mortes. Um bom exemplo é olhar para o centro da cidade onde existe concentração de homicídios, mas não de mortes causadas pela polícia. Outra diferença interessante é a enorme concentração de MDIPs na zona leste da cidade, enquanto que os homicídios não se concentram na mesma área.

Por fim, o último dado que nos ajuda a compreender o contexto em que ocorrem as mortes decorrentes de intervenção policial é o fato de que, no Estado de São Paulo, 73% das mortes de policiais ocorrem fora de serviço. Ao mesmo tempo, 71% das mortes decorrentes de intervenção policial ocorrem em serviço. Ou seja, não se trata de confrontos diretos simultâneos em que morrem “bandidos” e policiais ao mesmo tempo.

Esse rápido retrato do que ocorre no Estado e na cidade de São Paulo nos traz três importantes características sobre as mortes decorrentes de intervenção policial: 1) o perfil das vítimas não coincide com o perfil dos “bandidos” (considerando a população carcerária como um perfil aproximado); 2) as mortes não se concentram nos mesmo locais que os homicídios comuns (ao menos na cidade São Paulo) e; 3) policiais e vítimas da polícia não ocorrem no mesmo momento já que as primeiras ocorrem, majoritariamente, com policiais fora de serviço e as segundas, com oficiais em serviço.

Significa dizer que existem evidências que desautorizam os discursos oportunistas que associam mais mortes decorrentes de intervenções policiais com menos homicídios dolosos. Os dados indicam que as mortes não acontecem como resultado de confrontos diretos entre policiais e “bandidos”. E, se isso não acontece, o crescimento das MDIP não pode ser visto como o responsável pela queda dos homicídios comuns.

A análise dessas circunstâncias é fundamental não apenas para compreender o fenômeno, mas para que as políticas de segurança sejam estabelecidas de forma combater eficientemente o problema. O diagnóstico correto permite que o tratamento possa ser o mais eficiente possível.

Ao invés de pegar carona no pânico da população, os gestores públicos que defendem a tese que associa o maior número de mortos pelas polícias com menor número de homicídios poderiam investir na melhoria de seus sistemas de monitoramento e avaliação das políticas de segurança pública, evitando-se, assim, falácias ideológicas.  Segurança Pública não é alquimia.