Mortes no Amazonas indicam a influência das facções criminais na manutenção da ordem nas prisões
Por Marcelli Cipriani. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC), da PUC/RS
Em meio à segunda maior onda de assassinatos de presos do Amazonas, que resultaram na morte de 55 pessoas que se encontravam sob a tutela do poder público, o governador Wilson Lima deu entrevista garantindo que o sistema prisional do estado está controlado, já que não haviam fugas ou agentes estatais feridos.
Lima ainda disse que é praticamente impossível impedir confrontos como os que ocorreram em quatro unidades prisionais diferentes e que envolveram detentos abrigados em um mesmo pavilhão.
Parece haver, aí, uma contradição. Se autoridades públicas já partem do pressuposto de que não há como controlar a violência letal cometida contra os presos, como é possível afirmar que o sistema está, ou em algum momento já esteve, sob controle?
Mas essa incongruência é apenas aparente. O que aconteceu em Manaus não se tratou de “algo atípico” – em que pese a excepcionalidade de algumas das mortes terem sido cometidas durante o horário de visitação, algo raro no mundo do crime –, mas de um dos desdobramentos possíveis a uma sucessão de escolhas políticas que atravessam todas as instituições do sistema de Justiça Criminal, no âmbito dos estados e da Federação.
A importância em sustentar o aparente controle e a “ordem” do sistema é um fantasma que acompanha governadores, secretários e gestores prisionais dos variados estados do país. Com as prisões brasileiras contando com uma superlotação de 69,3% – no Amazonas, esse índice chega a 136,8% – a maioria delas operando de forma precária e oferecendo condições de vida degradantes, as instabilidades figuram sempre no horizonte.
Motins, fugas e rebeliões são “desordens” que, ao ocorrerem, desmoralizam o poder público e desnudam o mito do Estado soberano na garantia da segurança – expondo-o como incapaz de reprimir o crime mesmo no interior da instituição que, por excelência, deveria representar sua contenção.
A maneira como a “ordem” é buscada – em um sistema que opera por meio de incessantes ilegalidades e, por isso mesmo, tende à produção de “desordem” – varia em cada prisão. Em face desse cenário, o sucesso em evitar massacres semelhantes ao ocorrido nessa semana não decorre apenas da ausência de “disputas internas” a facções criminais, mas também está atrelado a características próprias à gestão prisional.
Como exemplo, o secretário de Administração Penitenciária do Amazonas, coronel PM Marcus Vinicius Almeida, declarou que “o estado não reconhece facções”, mesmo com o governador Lima ter informado que há, nas unidades daquele estado, separação dos presos de acordo com a pertença a diferentes grupos.
Apesar dos efeitos simbólicos, a falta de reconhecimento sobre o papel das facções no sistema prisional não afasta, magicamente, o poder que esses grupos exercem na prisão, tampouco elimina o fato de que eles seguem contando com esses espaços para a expansão de sua influência nas áreas urbanas.
Do ponto de vista dos presos que já estão inseridos nas redes dos grupos, a convivência em pavilhões e galerias conforma nichos de comerciantes, ampliando oportunidades para o fornecimento de drogas, a obtenção de lucro e as colaborações no mundo do crime. Quanto aos que ainda não os integram, a entrada nesses ambientes acirra a possibilidade de vinculação, em um contexto no qual a oferta de bens e serviços – muitos deles, básicos e que deveriam ser providos pelo Estado – é feita por integrantes de facções.
Enquanto parte da sociedade regozija-se com o sofrimento a que os presos estão sujeitos, os grupos criminais promovem o acolhimento dos recém-chegados e são grandes responsáveis por tornar a vida na prisão um pouco menos dura – ajudando os presos na viabilização de visitas de familiares, no acesso a advogados e mesmo à comida de melhor qualidade. Ainda que, muitas vezes, esse auxílio não gere um ônus direto àquele que o recebe, costuma estabelecer um compromisso, posto que há expectativa de reciprocidade.
Como saldo, a política de encarceramento em massa é altamente rentável para as facções, ainda que traga enorme sofrimento e exponha a violências institucionais um sem-fim de pessoas – não só presos, como também seus familiares. De outro lado, a gestão compartilhada do sistema possibilita que, a despeito da enorme superlotação, do baixo gasto com funcionários e com a manutenção do preso como pessoa, as prisões sigam operando em “ordem”.
O poder das facções segue se manifestando no país com uma capilaridade impressionante – ainda que lideranças sejam transferidas ao sistema federal, como já era o caso dos dois líderes atribuídos às alas da Família do Norte que romperam nos últimos dias. No crime, espaços de poder não ficam vazios, e esses grupos já atingiram uma dimensão que os desobriga das determinações de indivíduos específicos.
Entretanto, a alternativa à negação – que, no Brasil, jamais é afirmada publicamente, embora perpasse pela prática de um sem-fim de unidades prisionais – implica altos custos políticos. Embora não se trate de uma novidade, ela compõe um raciocínio contra intuitivo e é largamente rechaçada pela população, que, mesmo contra todas as evidências, permanece convicta na retórica de que, se o crime continua crescendo, é porque não há aprisionamentos o suficiente, porque a lei não é rígida o bastante ou porque a prisão não é tão severa como deveria.
Ocorre que, diante do ritmo galopante de pessoas presas, o funcionamento do sistema depende do constante equilíbrio entre os antagonismos que marcam a atuação do Estado e a das facções, que controlam a maioria dos presídios. Se trata de uma verdade inconveniente, mas que já foi demonstrada reiteradamente pela potência da mobilização coletiva no interior do cárcere.
Da forma como opera no Brasil, o sistema prisional não está alheio ao crime e às facções, mas integra sua equação. Nesse sentido, não só o uso da prisão é incapaz de contribuir para o controle da violência, como também a contenção de indivíduos em unidades prisionais não impede a continuidade de dinâmicas criminais – pelo contrário, lhes serve de plataforma.
Mortes e crises como as de Manaus são consequências sempre possíveis a uma dualidade entre o legal e o ilegal, que atravessa o sistema como um todo. A partir da prisão, os grupos criminais são capazes de seguir se expandido e consolidando. Contando com a influência dos grupos criminais, o Estado pode manter sua racionalidade punitiva intacta e, ao mesmo tempo, tentar viabilizar a gestão e a manutenção de um sistema inviável em “ordem”.