Ivan Marques escreve para o Faces da Violência o artigo ‘armas e o sonho do Rambo tropical’

Sérgio Lima. Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Por Ivan Marques. Advogado e Diretor Executivo do Instituto Sou da Paz

Assim como em um descompromissado jogo de truco, aquele jogo de apostas em que muitas vezes vale mais a pose e o grito do que as cartas na mão, o presidente Jair Bolsonaro olhou para o Congresso Nacional, Ministério Público Federal, partidos políticos, sociedade civil organizada e para 64% da população brasileira contrária ao maior acesso a armas e pediu seis: dobrou a aposta.

Após ter feito de seu primeiro ato como presidente a assinatura do decreto que flexibilizou a legislação de controle de armas no Brasil, o chefe da nação produziu ainda mais duas normas sobre o tema em apenas cinco meses de governo. O último, foi anunciado como a correção dos excessos questionados pelo Congresso, MPF e outros atores que viram de riscos à segurança pública a inconstitucionalidades na medida.

Ainda que a obsessão de Bolsonaro em armar a população seja acolhida por diminuta parcela dos brasileiros, suas consequências gerarão efeitos sobre esta e futuras gerações. Pesquisas de rastreamento de armas e munições têm mostrado consenso sobre o efeito duradouro das armas de fogo que vão parar no crime. A título de exemplo, pesquisa do Sou da Paz em parceria com o Ministério Público de São Paulo identificou um revólver Taurus, calibre 38 – arma mais comum em circulação no Brasil -, que foi apreendido pela polícia com um assaltante de lanchonete em um bairro da zona leste de São Paulo. A arma pertencia originalmente a uma empresa de segurança privada que teve seu vigilante rendido e que acabou perdendo o revolver para os criminosos. Esta era a segunda vez que a polícia resgatava a arma das mãos de assaltantes e a devolvia à empresa de vigilância. Antes, a mesma arma havia sido perdida para o crime em outra rendição, de outro vigilante da mesma empresa, e usada posteriormente em um roubo a um posto de gasolina. Quatro roubos, dois vigilantes que perderam a arma, duas operações da Polícia Militar para retirar das ruas o mesmo revólver que teve origem legal e circulou anos e anos na mão de criminosos.

A inconsequência da medida tomada pelo Planalto se mede justamente nas vidas afetadas por milhares de novas armas de fogo que passarão a circular pelo Brasil por anos a fio. As pesquisas de rastreamento têm mostrado que revólveres e pistolas são artefatos simples e que com o mínimo de cuidado e manutenção chegam a funcionar por mais de 40 anos.

Não bastasse a facilitação destes tipos de armas, os decretos do governo abrem brecha para a comercialização de novos modelos de armamento, anteriormente só utilizados pelas Polícias ou Forças Armadas. São carabinas, rifles, escopetas, revólveres e pistolas dos mais diversos calibres que farão parte do cardápio de armas do Brasil. Sob o débil pretexto da defesa pessoal, o governo acaba de liberar, por exemplo, graças ao inciso I, do artigo 2º do decreto 9.797 uma versão do fuzil Colt AR-15 adaptada para o calibre 9mm: arma mais que desejada por todas as facções criminosas no Brasil. Ou então, caso o chamado “cidadão de bem” prefira algo menor, pode levar para casa o icônico revolver que usa a munição Magnum .44, usada por Dirty Harry nos cinemas ou para abater ursos no hemisfério norte.

Mais assustador que a farra de novos modelos e calibres a desfilar pelas ruas e casas deste Brasil, o decreto também provê quantidade inexplicável de munições disponíveis para cada arma comprada. Para cada arma adquirida, fica permitida a compra de até cinco mil munições por ano. Um aumento de cem vezes em comparação com os limites anteriores. Isso significa que o cidadão armado poderá disparar aproximadamente 13 vezes ao dia, caso tenha somente uma arma. Considerando que somente na Polícia Federal temos aproximadamente 350 mil armas registradas legalmente, chegamos ao absurdo número de um bilhão, setecentos e cinquenta milhões de munições vendidas por ano. E para que tudo isso? Soma-se ao problema do comércio civil de munições o fato deste material não ter marcação obrigatória. Dessa forma, milhares de novas munições poderão ser revendidas ou simplesmente desviadas para a mão de criminosos sem nenhuma rastreabilidade. O presidente não se deu ao trabalho de justificar tal escolha na coletiva de imprensa de 7 de maio, quando ainda anunciava que o decreto tratava fundamentalmente de atiradores esportivos, o que se mostrou falso no texto publicado dia seguinte no Diário Oficial..

Para completar o cenário da farra da bala, o decreto 9.797/2019, em seu artigo 20, parágrafo 3o,  atropela a lei e o Congresso Nacional ao estabelecer que várias categorias profissionais são consideradas “de risco” e, assim, devem ganhar o privilégio de carregar uma arma na cintura. De caminhoneiros a agentes de trânsito, de jornalistas a advogados, na cabeça do presidente todos sofrem iminente perigo e poderão, na necessidade, sacar suas armas e disparar suas cinco mil munições no meio da rua. Para ficarmos somente na categoria incluída neste último decreto, os advogados, temos mais de um milhão e duzentos mil inscritos na ordem dos Advogados do Brasil aptos a solicitar, agora, seu porte de arma.

Vale perguntar a quem serve este tipo de promoção gratuita de armas e munições para além da indústria de armas e criminosos. Será que a medida prioritária  para o Brasil em cinco meses de governo é a liberação de armas?  Esse é o principal problema do país?

Ao assinar os decretos, o presidente garantiu que não promovia ali uma medida de segurança pública. De fato, acertou o alvo. Com as alterações propostas na já combalida política nacional de controle de armas, Bolsonaro promove verdadeiro desserviço à segurança pública. Fica agora mais difícil a vida do pobre soldado policial militar que ao atender uma das milhares das ocorrências cotidianas pode deparar-se com um Rambo tropical portando orgulhoso sua AR-15 9mm ou seu potente e caro revólver Magnum .44.