Paralisia na segurança faz governo ignorar a vida de 5 milhões de pessoas feridas com armas de fogo no país
Em uma semana em que a opinião pública tenta compreender o estado de espírito e as intenções do Presidente Jair Bolsonaro, que compartilhou um texto de um servidor da CVM (Comissão de Valores Imobiliários) em tom conspiratório e que pode ser lido como um “chamado às armas”, é interessante revisitar alguns dados que têm sido produzidos nos últimos anos sobre violência armada e/ou as tendências autoritárias da sociedade brasileira e os descalabros na segurança pública.
Independentemente das intenções do Presidente e de seu déjà-vu janista, os brasileiros, entre indignados e perplexos, já vêm sendo bombardeados com notícias do perigoso curto circuíto que toma conta do mundo da realpolitik e que esvazia a política de sentido desde 2013. Porém, junto com a deterioração do quadro político, no mundo real das ruas, a população está sitiada pela violência, pela insegurança, pelo colapso fiscal do país e, agora, pelas ameaças ignóbeis de cortes e desmonte da Educação.
Enquanto isso, o Brasil sozinho continua a responder por cerca de 10% dos homicídios registrados no mundo, quando temos aproximadamente 3% da população mundial. Vivemos reféns do medo e, mesmo quando temos algo positivo acontecendo como a queda por 14 meses dos crimes violentos no país, as autoridades pouco sabem o que esta acontecendo e, mesmo assim, não ficam encabuladas e anunciam planos sem metas.
E este medo não é infundado: pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Datafolha revelou, já em 2017, que quase 50 milhões de pessoas com 16 anos ou mais tinham conhecidos que foram assassinados. Isso significa 1/3 da população adulta do país. Constatou também que cerca de 15 milhões conheciam pessoas mortas pelas forças policiais. E, considerando a atualidade do dado, vale resgatar que a pesquisa estimou que quase 5 milhões de brasileiros já foram feridos por armas de fogo.
Vejam, estimadas 5 milhões de pessoas feridas com armas de fogo são insuficientes para demover o atual governo da péssima ideia de legislar por decretos, autorizar que as pessoas comprem 5 mil munições por ano e revogar na prática qualquer política de rastreamento e controle de armas. E, o mais grave, os demais Poderes estão cientes das ilegalidades do ato do Presidente mas estão demorando para se posicionar e conter excessos.
Não à toa, vivemos um contexto de desilusão política e de pânico moral sem precedentes. Por mais que Jair Bolsonaro emule uma espécie de catarse de tudo o que aqueles que acreditam em justiça social e cidadania tentamos evitar, o cenário não é só local. Trump, Duterte, Orban ou Erdogan são mostras de que o medo e a intolerância têm se tornado uma bem-sucedida estratégia eleitoral. Mais importa impor a ordem do que construir uma sociedade mais segura.
Tenho frisado bastante aqui no Faces da Violência que o fato é que a sociedade brasileira está flertando com o desmonte do Estado Democrático de Direito inaugurado pela Constituição de 1988. Vivemos a era da sociedade de risco, onde tecnologia e medo conformam nossas personalidades e deixam espaço para discursos punitivistas, sexistas, racistas e xenófobos. O medo é o principal combustível da política do ódio, que em muito tomou conta da internet e das redes sociais.
Líderes extremistas como Bolsonaro ou, mesmo Witzel, (ainda mais quando escudados por trupes ideológicas) elegem os culpados (“bandidos”, migrantes, políticos tradicionais, minorias étnicas, etc.), aceitam a violência como narrativa e sugerem a volta a um passado idealizado que, obviamente, não se realizará. A atuação do Estado também afeta a sensação de segurança.
Segundo outra pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, já bastante citada aqui no Blog e que foi apresentada no Ilustríssima, para 69% dos brasileiros com 16 anos de idade ou mais, “o que este país necessita, principalmente, antes de leis ou planos políticos, é de alguns líderes valentes, incansáveis e dedicados em quem o povo possa depositar a sua fé”. E, o cenário fica ainda mais grave se somarmos aqueles que “concordam em parte” com a frase. Neste caso, teremos hegemônicos 85% da população sujeitos a influências autoritárias para os quais as leis e os projetos políticos são indiferentes.
Ao relermos esses dados, é quase impossível não os associar às estratégias de confronto e mobilização permanente de Jair Bolsonaro. Suas ações desde que tomou posse não parecem ser desprovidas de racionalidade mas sim embebidas por um projeto autoritário de Poder que se ocupa de solapar a institucionalidade política e ser ungido pela população sem mediações ou freios.
O drama é que a onda que levou Bolsonaro à Presidência, que aceitava e achava mera retórica propagar toda uma sorte de despautérios verbais contra a agenda de direitos civis e humanos, ainda tem apoio entre policiais, que em tese seriam os guardiões da legalidade democrática, mas que, em nome da ordem social idealizada por Bolsonaro, rotula e reprime todos que discordam de “comunistas”.
Ainda segundo o artigo no Ilustríssima, também é possível compreender a onda em torno do projeto de Bolsonaro por algumas outras questões da pesquisa do FBSP: 81% da população adulta brasileira declarou que “a obediência e o respeito à autoridade são as principais virtudes que devemos ensinar as nossas crianças”.
Em outra direção, para 64% dos entrevistados “todos devemos ter fé absoluta em um poder sobrenatural, cujas decisões devemos acatar”. A dimensão religiosa ganha força e há uma aproximação com o mundo da ordem, que não é só instrumental mas orgânica, já que cria simbioses complexas entre Estado e religião. Pela pesquisa, 53% dos brasileiros adultos concordam ainda com a frase “o policial é um guerreiro de Deus para impor a ordem e proteger as pessoas de bem”.
Ou seja, Bolsonaro sabe que conquistar os policiais para o seu projeto de poder foi fundamental para ter condições de impor o seu modelo de ordem social para o restante da população. O problema é que, quando convidou Sergio Moro para Ministro da Justiça e da Segurança Pública, ele teve que rifar as demandas das Polícias Militares e hoje vive às turras com os seus próprios apoiadores.
Em suma, se no plano político, flertarmos com o autoritarismo e com a intolerância, no campo da segurança pública convivemos com a paralisia. Há propostas e promessas, mas não há ações, recursos e políticas públicas. O Governo Federal não tem responsabilidade sobre a tendência de queda da violência atual. E, até por isso, a redução dos homicídios corre infelizmente sérios riscos de, mais uma vez, ser um soluço na curva do agravamento da violência letal no Brasil nos últimos 30 anos.
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Alguns policiais, após a publicação do texto, reclamaram comigo, com razão, que eu estava generalizando a classe e que nem todos aderiram à pauta autoritária e ideológica de Bolsonaro. Importante reconhecer que generalizações sempre provocam injustiças e, portanto, faço mea-culpa. E a faço com esperança, já que as polícias são instituições-chaves de uma democracia e é importante investirmos na valorização dos policiais brasileiros e das boas práticas de prevenção da violência e repressão qualificada do crime.