O poder do lobby das armas por trás do Decreto de Bolsonaro
Com Rafael Alcadipani. Professor Adjunto da FGV-EAESP, membro do Forúm Brasileiro de Segurança Pública e Visiting International Fellow no Crime & Security Research Institute – Cardiff University.
Segundo o dicionário Houaiss, a palavra simulacro significa imitação; falso aspecto; cópia malfeita ou grosseira; arremedo; dissimulação, fingimento ou fantasma. Um simulacro espelha-se na realidade mas a utiliza na construção de uma lógica própria e autônoma. Há um descolamento entre realidade e prática que não é necessariamente reconhecido, abrindo-se margem para inúmeros equívocos, manipulações e erros de prognóstico.
Este é o caso histórico da segurança pública, mas que, sob Bolsonaro, ganha contornos dramáticos, pois a ideologia turvou o debate e interdita a busca de soluções baseadas em experiências exitosas e em evidências. Nada se fala sobre o trabalho da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública) e dos esforços que os Governadores, Secretários, Chefes de Polícia, Comandantes e milhares de policiais fazem todos os dias para dar conta do desafio de fazer segurança pública praticamente sem apoio ou dinheiro federal.
Na verdade, como mostrou o GPS Ideológico lançado pela Folha esta semana, o governo Bolsonaro privilegia radicais de ultradireita nas redes sociais e, com isso, parece querer impor a qualquer custo sua visão de mundo a todos os brasileiros.
Só que sua visão de mundo na área da segurança pública é eivada de erros grosseiros como declarar que ao liberar o porte de armas para vários segmentos de população por Decreto não tem nada a ver com segurança pública, mas com o direito de autotutela e autoproteção, como se essas coisas andassem separadas uma da outra. E, o mais grave, sua visão de mundo, é alienígena ao Brasil e tem no lobby e nas estratégias da Associação Nacional do Rifle (NRA, da sigla em inglês) dos EUA sua origem.
Por aqui, além do clã Bolsonaro, o maior adesista ao projeto da NRA é Benê Barbosa, presidente de uma organização pouco transparente e não auditada chamada Movimento Viva Brasil – MVB, que no GPS Ideológico aparece em posição central na bolha da extrema direita. Ao contrário das entidades da sociedade civil que ele gosta de criticar em suas redes sociais, o FBSP incluído, que divulgam balanços contábeis e auditorias independentes, o MVB é uma caixa preta que, a qualquer tentativa de saber como se financia, repele ferozmente quem faz este tipo de indagação.
E, em um indicativo de que há uma diferença entre realidade e redes sociais, uma análise pelo Google Trends demonstra que a cruzada de Benê Barbosa tem muito menos força e peso fora das redes sociais e de seus exércitos de bots e milicianos digitais. E, dada a influência que este grupo exerce no atual governo e o grau de opacidade envolvido em suas ações, seria de bom tom e republicano que o Ministério Público verificasse se não há conexão ilegal com interesses internacionais que violem a nossa Constituição e a nossa soberania. Quem não deve, não teme.
Benê Barbosa é o Olavo de Carvalho das armas, que gosta de vociferar contra e rotular muitos de inimigos, mas não tem o menor rigor científico naquilo que defende. Assim como os argumentos de Olavo, fala de temas complexos de forma simplista e simplória. Ele é uma perfeita tradução do liberal fake, que rejeita a intervenção do Estado no controle do porte de armas e é a favor da caça, mas aceita e defende a proibição estatal completa sobre drogas, por exemplo.
O fato é que o governo Bolsonaro usa a influência desse movimento e comporta-se como linha auxiliar na estratégia de poder do poderoso lobby das armas mundial e, sob o pretexto de cumprir uma promessa eleitoral, desorganiza todo o sistema de monitoramento e controle de armas do país, bem como desconsidera a própria proteção dos policiais que, majoritariamente, o apoiam.
Ao invés de investir para solucionar os gargalos do sistema, como aquele que permite que 94,9% das armas apreendidas pelas polícias estaduais fiquem sem registro no SINARM (Sistema Nacional de Armas de Fogo), da Polícia Federal, opta por liberar geral e dificultar ainda mais o trabalho de investigação e rastreamento de crimes.
Da mesma forma, adota a tática de desqualificar o saber científico e o trabalho da mídia profissional para torná-los equivalentes às suas crenças e dogmas. Com isso, desconsidera estudos sérios e sujeitos a revisão rigorosa de pares, como a tese de doutorado do economista Daniel Cerqueira, integrante do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que mostra que 1% a mais de armas de fogo em circulação gera quase 2% a mais de assassinatos. E que esse aumento na quantidade de armas não tem efeito para dissuadir roubos e assaltos.
Desconsidera que, de acordo com pesquisa FBSP/Datafolha de 2017, 78% da população adulta do país acredita que, quanto mais armas de fogo em circulação mais mortes teremos. Engana a opinião pública sobre o resultado do Referendo de 2005, que perguntou se a população queria que a comercialização fosse proibida no Brasil. A proibição foi, de fato, rejeitada, mas o controle e o rigor não foi objeto de consulta. Tanto é que recente pesquisa Datafolha indica que 68% da população adulta é contra a posse de armas. Como diz o ditado popular, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Abrir mão de controles é não só perigoso mas é abrir mão de responsabilidades que são a razão de ser do Estado Moderno.
O Decreto do descontrole das armas é, em última instância, a capitulação do Brasil à lógica geopolítica que nos coloca em posição subalterna e servil. É uma peça juridicamente falha, politicamente equivocada e ideologicamente parcial. Ele não está preocupado com o direito individual, mas serve para reproduzir um simulacro em que o medo e a insegurança são ingredientes-chave para manter o controle na narrativa política e do Poder na mão de poucos e sabidos senhores das armas.