O risco de juízes justiceiros na segurança pública

Daniel Marenco/Folhapress
Renato Sérgio de Lima

Texto de Ignácio Cano, professor da UERJ e membro do Laboratório de Análise da Violência – LAV

“Bandido bom é bandido morto” é o bordão que encarna no Brasil o apelo ao extermínio de criminosos. Num país atormentado pela violência, pesquisas mostram que entre um terço e a metade da população adere em alguma medida a esta ideia. O pressuposto dela é que a sociedade está dividida de forma dicotômica entre cidadãos de bem e bandidos, tal que a segurança dos primeiros exigiria a eliminação dos segundos.

Na verdade, trata-se não propriamente de uma proposta de endurecimento penal, como poderia ser a pena de morte, mas de um apelo a que cidadãos comuns e policiais possam matar supostos criminosos sem serem importunados pelos limites da lei. Daí a irritação com que os seus proponentes reagem aos argumentos dos defensores dos direitos humanos, estes sim baseados na lei. Invertendo a máxima brasileira de que a lei seria apenas para os inimigos, neste caso a lei parece reservada às relações entre os pares, enquanto aos inimigos é destinado o extermínio.

De fato, as nações que admitem a pena de morte a aplicam após julgamentos demorados que considerem todas as evidências para evitar injustiças que se tornariam irreversíveis. Já os partidários do ‘bandido bom é bandido morto’ costumam defender a morte sumária nos becos, sem apelação, cometida por policiais justiceiros ou indivíduos indignados. Em suma, estamos perante uma proposta profundamente anticivilizatória e antijurídica, que empurra a sociedade a um estágio pré-hobbessiano em que cada um se defende por si e os próprios agentes do Estado agem sem controle. É antijurídica não apenas no sentido de descumpridora da lei vigente, mas no sentido mais amplo de ser contrária à própria ideia do direito e do controle jurisdicional. Se levada ao extremo, ela tornaria o Poder Judiciário tão desnecessário quanto nos filmes de faroeste, nos quais a lei é aplicada pelos xerifes na ponta do revólver.

O auge desta visão está vinculado à proliferação dos populismos de extrema direita no mundo inteiro. Estes populismos indignados propõem uma rebelião contra as velhas elites políticas, econômicas e intelectuais, bem como contra os limites que a lei impõe aos governos. A própria ciência é também colocada em questão e aumentam aqueles que rejeitam as vacinas ou negam o aquecimento global. Mas se no resto do mundo não são os médicos quem se posicionam contra as vacinas nem os biólogos os que questionam o aquecimento global, no Brasil a ofensiva contra o direito está protagonizada por juízes ou ex-juízes.

No Rio de Janeiro, o ex-juiz Witzel, governador do estado, manifesta obsessão por ‘abater’ criminosos com fuzil sem importar se eles representam ou não uma ameaça iminente. Num país que não admite a pena de morte, um agente público só pode matar em legítima defesa contra uma ameaça grave e imediata. Qualquer outra opção constitui crime de homicídio e, se levada à prática, deveria colocar o governador no banco dos réus como mandante. O termo ‘abate’ não é casual pois visualiza a morte de pessoas como se fossem frangos ou bois e facilita a aceitação da política de extermínio por parte de um projeto político que se pretende cristão. Imediatamente após a operação policial no Fallet que causou 15 mortos, o governador afirmou que a intervenção foi legítima, antes mesmo de que começassem as investigações, prejulgando-as e enfraquecendo o controle jurisdicional que ele mesmo, há pouco, representava.

No Congresso, integrantes do grupo político presidencial pretendem aprovar a ‘lei do abate’, que indiretamente confirma que a proposta do governador do Rio é ilegal, pois caso contrário ela seria desnecessária. Outros defenderam que as mortes cometidas por policiais simplesmente não deveriam ser investigadas, o que deve ter provocado euforia entre milicianos e outros agentes corruptos. Por sua vez, o ministro da Justiça, o ex-juiz Moro, contemplou as mortes cometidas por policiais no seu pacote anticrime, para acomodar a agenda presidencial. Moro, candidato a passar à história pela aplicação seletiva e desmedida da lei com objetivos políticos, corre agora o risco de figurar nos livros como incentivador das execuções sumárias.

O pacote pretende acrescentar dois incisos ao artigo 25 do Código Penal, determinando a existência de legítima defesa quando o agente público intervém para “prevenir injusta e iminente agressão” ou para proteger reféns. Na verdade, isso já está implícito no caput do artigo e, na prática, nenhum policial é hoje condenado nessas situações. O pacote propõe também acrescentar um artigo ao CPP, o 309-A, para que o agente policial não seja preso em flagrante nos casos em que tiver cometido o crime em estado de necessidade, legítima defesa ou estrito cumprimento do dever. De novo, isso é o que já acontece, pois policiais são presos em flagrante apenas quando há evidências de ilegalidade.

Essas modificações seriam então inócuas do ponto de vista jurídico, mas muito relevantes do ponto de vista político, pois mandam um sinal aos policiais no sentido de que eles podem, e devem, matar mais. A lei perde assim a sua função reguladora das condutas em prol de uma função retórica a serviço de um projeto político. De fato, se o ministro leu as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, deve saber que o problema do Brasil não é que os policiais sejam injustamente acusados de homicídio, mas exatamente o contrário: a dificuldade que o país tem para investigar e punir os abusos policiais quando acontecem.

Além disso, o pacote visa acrescentar um parágrafo ao artigo 23 do Código Penal, que regula os excessos culposos ou dolosos, para que o juiz possa “reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Este acréscimo, além de alentar os excessos, gera notável insegurança jurídica, pois um juiz conservador poderá anular a pena, outro poderia aplicá-la pela metade, enquanto um juiz garantista a aplicaria por completo. Assim, cada juiz poderia agir da forma que bem entender, da mesma forma que o policial na rua, enfraquecendo a noção de igualdade perante a lei.

Esperemos que Deus, que dizem que está acima de todos, nos livre dos juízes justiceiros.