Caso Marielle reforça a urgência da melhoria das taxas de elucidação de homicídios
Por Arthur Trindade M. Costa*
Investigar e elucidar homicídios é uma das principais estratégias para reduzir este tipo de crime e reduzir a violência. Por isso, alguns países têm realizado reformas para melhorar o desempenho das unidades policiais encarregadas da investigação e não focam apenas na questão da produção legislativa.
Em alguns casos, passou-se a investir maiores recursos nos órgãos de perícia, num esforço de priorizar as provas técnicas em detrimento das provas testemunhais. Outros países criaram manuais de investigação, introduzindo procedimentos operacionais para melhorar o desempenho dos investigadores, como o Murder Investigation Manual implantado na Inglaterra. Também foram criados sistemas de indicadores da investigação criminal, como o National Incident Based Report System (EUA).
O resultado destas medidas foi a melhoria das taxas de elucidação de homicídios. Ou seja, do número de casos que foram investigados pela polícia e denunciados pelo Ministério Público. Em 2002, alguns países apresentaram taxas elevadas de elucidação de homicídios, como Alemanha (96%), Japão (95%), Inglaterra (81%) e Canadá (80%).
O caso dos EUA é interessante. De acordo com o Murder Accountabilty Project, a taxa de elucidação caiu da faixa de 80% na década de 1980 para cerca de 60% nos anos 2000. Muito se tem discutido sobre as causas dessa queda de desempenho. A explicação mais plausível é que a queda do número de homicídios se concentrou nos casos de fácil elucidação. Ao passo que o percentual dos casos de difícil elucidação permaneceu quase que inalterado.
Sabemos que a maior parte dos homicídios são de fácil elucidação devido a abundância de provas, indícios e testemunhas. Segundo a literatura especializada, as primeiras 48 horas são fundamentais para o sucesso da investigação. Já nos homicídios de difícil elucidação a situação é oposta, pois quase não existem elementos probatórios. Assim, a investigação é demorada e exige um grande número de policiais. É o caso da investigação do assassinado da vereadora Marielle Franco.
No Brasil ainda não é possível determinar a taxa de elucidação de homicídios, uma vez que não existe um sistema de oficial indicadores que permita mensurar o desempenho da investigação criminal. Levantamento feito pelo Monitor da Violência apontou que, em 2017, a taxa nacional era um pouco inferior a 25% dos casos. Há também enormes diferenças entre os estados. Recentemente o Instituto Sou da Paz apresentou o relatório “Onde Mora a Impunidade”.
O levantamento analisou o desempenho da investigação de homicídios em 11 estados que tinham dados confiáveis. Tomando por base os homicídios ocorridos em 2016, verificou-se que 5 estados conseguiram elucidar mais da metade dos casos no período de 2 anos (SC, MT, RO, SP e ES). Por outro lado, 6 estados elucidaram menos de 35% dos homicídios no mesmo período (AC, PA, AM, PI, PE e PA). Sendo que o Pará apresentou taxa de 11%. Está variação nos leva a pensar que a legislação não é necessariamente um empecilho, pois Santa Catarina elucidou 90% dos casos. Parece que os problemas são de ordem organizacional e cultural.
Há pelo menos três perspectivas para explicar a variação nas taxas de elucidação. A primeira sugere que a discricionariedade da polícia tem efeitos significativos nos casos que serão priorizados na investigação. Alguns aspectos demográficos (raça, sexo e idade) influenciariam a escolha de casos. A segunda perspectiva sugere que os aspectos situacionais, relacionados ao contexto e às circunstâncias dos homicídios, independente do perfil das vítimas, teriam grande impacto sobre as taxas de elucidação de homicídios. Crimes cometidos em lugares ermos e relacionados à atuação de gangues e facções dificultariam bastante a investigação policial.
Finalmente, uma terceira perspectiva destaca o papel da estrutura e organização policial, bem como a relação das polícias com a comunidade afetariam significativamente o desempenho das polícias. Unidades especializadas e colaboração da população seriam fatores importantes para o sucesso das investigações. As três perspectivas não são excludentes, mas sim concorrentes. Ou seja, o desempenho da investigação de homicídios depende aspectos demográficos, situacionais e organizacionais.
No Brasil, de forma geral, nos bairros pobres com grande número de homicídios, as delegacias de polícia (quando existem) funcionam em condições precárias. Elas não possuem efetivo policial suficiente para investigar os crimes e tampouco dispõem de viaturas e instalações adequadas. Os investigadores dificilmente contam com apoio financeiro para desenvolver as atividades de busca de informações. De forma geral, os inquéritos de homicídios concluídos e enviados ao Ministério Público são aqueles, cujos agressores foram identificados e capturados em flagrante pelos policiais militares.
Apesar do quadro caótico, há boas iniciativas de reestruturação da investigação de homicídios no Brasil. Visando aumentar a rapidez e integração e coordenação dos trabalhos de investigação, alguns estados (i.e. SP, RJ, PE, MG, ES) criaram delegacias especializadas em investigação de homicídios. Em geral, estas delegacias contam com maiores efetivos destinados especificamente às atividades relacionadas à elucidação de homicídios. Os efetivos são divididos em equipes que atuam em áreas específicas.
Em algumas dessas delegacias, as equipes encarregadas de investigar o local do crime, contam com a participação de peritos. Tais medidas resultaram na diminuição do tempo de início das investigações, numa maior integração entre policiais e peritos e numa divisão de melhor das tarefas. Isso tem melhorado muito os níveis de elucidação de homicídios.
Ou seja, se adotarmos medidas de modernização do trabalho policial no que diz respeito à qualidade das investigações criminais, conseguiremos reduzir a violência e punir os criminosos. Isso passa por medidas penais e processuais penais, mas passa, sobretudo, por viabilizarmos melhores condições operacionais para que as investigações policiais possam ser mais eficientes e efetivas. Do contrário, estaremos tão somente criando falsas expectativas.
*Professor de Sociologia da Universidade de Brasília e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
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O texto foi atualizado para incluir o link do relatório “Onde Mora a Impunidade”, do Instituto Sou da Paz.