Violência policial, a ‘Hidra de Lerna’ brasileira

Danilo Verpa/Folhapress.
Renato Sérgio de Lima

As polícias do país contam com profissionais altamente qualificados e treinados. Temos corporações que inovam e exportam práticas para diversas polícias do mundo, muitas por intermédio de programas de assistência técnica patrocinados pelas Nações Unidas.

Quando querem, sejam as polícias militares, civis e/ou federais, conseguem demonstrar um padrão de qualidade que não faz feio para nenhuma instituição de países mais ricos e desenvolvidos. São vários os projetos que estão aí para comprovar esta tese, a começar pelo GESPOL (Sistema de Gestão da Polícia Militar de São Paulo), iniciado em 1996 e que está baseado em três pilares doutrinários: Polícia Comunitária, Direitos Humanos e Gestão pela Qualidade.

O Gespol contribuiu para que a PM paulista tivesse condições políticas e organizacionais para não ser extinta, em 1997, após pressões nacionais e internacionais decorrentes do caso “Favela Naval”, que consistiu na exibição de uma reportagem em 31 de março de 1997, na TV Globo, mostrando um grupo de policiais militares extorquindo e executando pessoas numa blitz na Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo.

E, em uma perspectiva histórica, vale pensarmos a importância estratégica dos comandantes e dos mecanismos de controle criados. Hoje, se não fossem os comandos, o episódio da “Favela Naval” muito provavelmente seria “aplaudido” pelos exércitos de Bots e Orks, seres míticos imortalizados nas obras de J.R. Tolkien, que infestam as redes sociais e vão conformando a estética da violência, do ódio e do ressentimento em que estamos imersos.

Se o estado de espírito de 2019 estive presente em 1996, o Gespol seria visto como um projeto menos importante e talvez não teríamos as polícias militares da forma como elas existem. Estamos vivenciando, nos últimos meses, o fortalecimento de discursos gritando por mais liberdade para que os policiais da linha de frente decidam o que, quando e como uma ação violenta será ou não legítima em termos legais.

E o Carnaval, por seu caráter catártico, trouxe vários exemplos à tona. O primeiro envolveu a Polícia Militar de MG, quando esta resolveu proibir manifestações de cunho político em blocos de Carnaval em Belo Horizonte. O STF já votou, em 2011 (ADI sobre Marcha da Maconha) pelo não acolhimento de censura prévia de conteúdo e não podemos deixar que as opiniões individuais de oficiais ou praças sejam as posições institucionais.

O segundo exemplo é o resultado do relatório da Ouvidoria das Polícias de São Paulo, que concluiu que a Corregedoria da PMESP só instaura 3% de todos os IPM (Inquéritos Policiais Militares) envolvendo mortes por policiais. Os 97% restantes ficam sob responsabilidade dos Batalhões. Temos aqui, a meu ver, um sério problema de supervisão e controle que precisaria ser alterado para podermos, inclusive, reivindicar as necessárias proteções jurídicas aos policiais que estão fazendo o policiamento na ponta de linha.

O UOL, do grupo que edita a Folha de S.Paulo, publicou reportagem sobre uma guarnição chefiada pelo filho do Deputado Cel. Telhada, que matou um “suspeito” em condições que precisam ser esclarecidas. Não precisou nem 24 horas para se notar que o nível de críticas feitas à reportagem impressionava pelo ativismo político e pela rapidez com que se considerou o episódio legítimo.

Mas as críticas não deram conta de explicar que, em grande parte das manifestações, a legitimidade da ação foi dada como certa e líquida, mesmo que, técnica e legalmente, não tenha havido perícia e que a vítima tenha sido removida do local contrariando portaria da SSP que determina que o corpo não seja removido, entre outros aspectos técnicos, jurídicos e legais. E, ao proceder desta forma, isso se torna notícia, já que é indicativo de, no mínimo, não conformidade com os regulamentos.

Ninguém que trabalha com polícias descarta de antemão que a ação possa ter sido legítima, pois este é um resultado possível da ação policial e por isso mesmo previsto em nosso arcabouço jurídico. O que se está aqui questionando é que só a investigação isenta pode dotá-la da legitimidade jurídica e não podemos, no jogo do bem contra o mal ou do policial x o “bandido”, achar que pedir controle e transparência seja visto como algo que atente contra as polícias. Não existe carta branca no ordenamento jurídico e constitucional brasileiro e não existe policial acima de qualquer suspeita.

O terceiro exemplo são as inúmeros denúncias de agressões sofridas por foliões durante o Carnaval. Não é possível aceitar que uma polícia que tem protocolos e procedimentos de alto nível, faça vistas grossas às faltas fartamente noticiadas e filmadas, sejam elas motivadas por pressão de sobrecarga de trabalho ou por desavenças e preferências ideológicas.

Vejamos a título de comparação a situação do caso que resultou na interrupção do Bloco do Fervo da Lud, no Rio de Janeiro. Naquela situação, tecnicamente falando, há inúmeros problemas que poderiam ter sido evitados. Não é um simples caso de conduta individual inadequada. É a falência do sistema de governança e supervisão das polícias.

Aproveitando que nosso imaginário voltou a ser povoado por mitos e crenças cegas, é possível dizer que a violência policial se assemelha muito à Hidra de Lerna, a serpente-dragão da mitologia grega que possuía nove cabeças, uma das quais imortal. Hércules, o semideus, foi encarregado de matar o monstro, mas para cada cabeça mortal que ele cortava com sua espada, duas novas brotavam em seu lugar.

Diante de tal ameaça, Hércules ateou fogo na Hidra e, por fim, cortou-lhe a cabeça imortal e a enterrou sob uma pesada pedra, onde ela teria permanecido viva. Moral da história, vemos que Hércules de fato não matou a Hidra, ele apenas a “varreu para debaixo do tapete”. Sua cabeça imortal ficou à espera para ser desenterrada e engolir as próprias instituições.

Tenho reiterado a importância das polícias para a segurança pública no Brasil e, até por isso, falo tranquilamente que se continuarmos a fortalecer posições políticas que hoje defendem a violência policial, estamos, no limite, enfraquecendo as próprias polícias. Defender a agenda de direitos da Constituição Federal não nos faz inimigos das polícias, muito pelo contrário.

Se hoje há uma forte adesão de policiais e juízes à agenda do Governo Bolsonaro, isso é um direito e uma liberdade individual. Mas, ao aceitar que opiniões individuais, por alinhadas ao momento, sejam tomadas como institucionais, estaremos esgarçando os mecanismos de controle e chocando o ovo, ou melhor, estaremos desenterrando a cabeça imortal da Hidra. Hoje segmentos significativos dos policiais concordam com medidas extralegais e violentas, emulando a ideia autoritária e perversa da urgência da eliminação dos inimigos do povo; amanhã, quando um oficial ou delegado pensar diferente, terá sua ordem acatada, será eliminado ou será expurgado?